segunda-feira, 22 de março de 2010

Cheiro de Pólvora




Um cômodo pequeno, uma mesa e três cadeiras em um madeiramento rústico, trincas nas paredes partindo das janelas que denunciam um céu tranquilo. Dois homens jovens conversam, um de pé, próximo a janela, o outro caminhando lentamente por entre a mobília. Há papéis desorganizados sobre a mesa.
O caminhante para e remexe os papéis. Suas expressões são tensas, não condizendo com a camiseta Ecko e o bermudão floral que, a primeira vista, poderiam fazer com que o confundissem com um turista. Ele encara a figura de calças jeans e camiseta preta a qual sustem o seu olhar com um rosto tranquilo e enérgico. Nosso psudo-turista força um sorriso e exprime um mal disfarçado ar de tranquilidade jocosa quando se dirige ao homem a sua frente.
- E aí, como foram as férias?
- Boas. É a resposta do sujeito que parece absorto em contemplações. Ele mantém seu olhar tranquilo. Não há raiva ou tristeza, intrepidez ou, tão pouco medo em seu semblante. Apenas as mesmas feições tranquilas e inalteradas. Ele está pensando.
- Encontrou o que procurava?
- Foi uma estadia extremamente frutífera. Consegui mais dados do que esperava. E os negócios? Qual o problema para que me chamem aqui tão depressa?
- Algo grande está rolando...
- Guarde esse cigarro, aqui no Rio é contra a lei fumar em locais de trabalho fechados.
- Tá de brincadeira, né?
- Não, considero este meu lugar de trabalho, por favor, prossiga.
Jonas guardou o cigarro meio que a contra gosto. - Bem, como eu dizia, algo grande está rolando. Algo além dos pacificadores nos morros. Muitas comunidades estão se atracando.
- Esses conflitos sempre ocorreram e nunca precisaram de meus serviços para resolvê-los.
Jonas olhou-o nos olhos. Respirou fundo. E em um tom de voz afetado disse:
- Armaram para o chefe!
Para o desapontamento de Jonas seu interlocutor permaneceu impassível. Que droga, ele havia até ensaiado aquele momento para que surtisse algum impacto! E aquele infeliz não moveu um músculo. E isso porque o "chefe" era o homem que "comandava" os traficantes que "comandavam" três complexos de favelas no Rio. Sem contar os assuntos fora das "comunidades".
- Estranho, você parece estar surpreso por eu não me surpreender. Espero que não, pois é necessário pouco raciocínio para perceber que um homem como ele possui muitos inimigos. Mas o que fizeram afinal?
- Uma verdadeira guerra! Várias comunidades menores formaram coalisões que se lançaram em diversos ataques suicídas conrtra os pontos estrategicamente mais fracos de nossas bases.
- Ataques suicídas?
- É um modo de dizer. Eles atacaram os pontos certos, mas com o tipo de soldado errado, um bando de idiotas, foram massacrados.
- E suas defesas?
- Sofremos muitas baixas, mas acho que amanhã tudo já estará de volta ao normal.
- Quando foi isso?
- Na última madrugada, mas demos um jeito de confundir os noticiários. Ninguém está sabendo de nossa fraqueza momentânea.
- Nas áreas menos protegidas... Apenas nestas?
- Sim, por isso temos certeza de que houveram delatores, seu trabalho será nos dar seus nomes.
- Ter certeza de que sabe de algo é o primeiro passo para desconhecê-lo. Foi a resposta distraída.
Jonas olhou-o fixamente. Foi apenas uma expressão droga! Para que todo este perfeccionismo, até com as palavras? - Que seja, o que nos importa é que capturaram um dos cabeças do grupo. Entretanto, tiraram pouca coisa dele, mesmo sob ameaça de morte. Ele só está vivo, na verdade, porque o Chefe acredita que você pode conseguir algo.
Ainda com seu ar pensativo ele se afasta das janelas e vai em direção a Jonas. Em sua face está desenhado um pequeno sorriso de satisfação.
- Eu sempre consigo.
Batidas apressadas na porta, Jonas a abre. De pé dois homens. Um de camisa cinza e bermuda jeans com uma pistola 45 na mão, ao seu lado um outro de roupa surrada com um capuz cobrindo o rosto. O de camisa cinza diz:
- Ô Jonas, ELE já tá aí?
- Claro, responde uma voz gélida no interior do cômodo, desde quando a morte se atrasa?
Um calafrio subiu pela nuca do homem de capuz quando este foi retirado e ele fitou os dois olhos castanhos dELE.
Amarraram o preso em uma cadeira e o homem de preto se aproximou. Pegou uma cadeira e se sentou em frente ao outro. - Como devo lhe chamar? Disse em um tom extremamente educado.
- Bilé. Respondeu um pouco mais confiante o aprisionado. Talvez aquele homem não fosse pior que os outros. Aquele jovem a sua frente sequer parecia perigoso.
Passaram-se em torno de 15 minutos sem ser dita nenhuma palavra. Bilé se perguntava o que ele estaria esperando? O que ele iria fazer? Que saco... já haviam lhe quebrado uma costela naquela manhã e estava doendo bastante, ele teria que fazer melhor do que isso pra tentar tirar alg...
- Trinta minutos.
- O quê? Bilé se sobressaltou... do que ele estava falando?
- Você tem trinta minutos, ele acionou um cronômetro no relógio de pulso, daqui a trinta minutos você morre.
- Ah sim. Se eu não disser o que você quer você me mata.
- Você não entendeu rapaz... pense um pouco Bilé... já ouviu falar de mim? Não. Mas eu sou o principal... Vamos dizer garimpador de informações, certo? Sou o principal garimpador de informações do "manda-chuva" da área. Conheci muitas pessoas desta e de outras comunidades. Então, por que você não conhece ninguém que já tenha me encontrado?
O traficante suava... esse cara deve ser louco... como assim trinta minutos? - Mas...
- Mas nada, meu amigo. Foram as palavras calmas que lhe saíram da boca. Você já está morto, morreu quando cruzou aquela porta. Ele se vira para o homem de cinza. - O que ele disse a vocês?
- Um cabo da PM forneceu as informações para o ataque. Ele prometeu auxiliar com um batalhão.
- Porra! A PM tá se aliando a bandidos dessa forma agora! Que merda!
Jonas esbraveja e dá murros no ar enquanto fala.
- Mas eu não pos... não sei nada!! Porra!! Eu não sei de mais nada! Quem vocês pensam que eu sou?
O homem de preto se levanta balançando a cabeça e vai em direção a uma pequena valise em um canto do aposento. Pega-a e a leva para cima da mesa. Sorrindo olha para Bilé e diz: Acho que você está com medo de falar... é compreensível. Tem medo de falar e ser castigado, possivelmente com a morte... Acho que vou ter que lhe ministrar uma pequena lição sobre a psiquê humana. A lição é sobre a forma de encarar a morte. Tentarei ser breve. Quando esta é certa costumamos passar por alguns estágios, sendo que o último é a aceitação, pois no fim das contas, todos estão cientes da morte e todo cérebro está preparado para morrer. Entretanto, nunca presenciei a aceitação da dor. Vamos ver se com você será diferente.
Este homem só pode estar blefando. Espere...Ele parece... Nao, ele está.... Está feliz...?!? Como alguém pode se portar com tamanha tranquilidade sorridente numa situação dessas?? - O que você acha que vai arrancar de mim? Não sei mais nada!
- Ótimo. Se você diz não saber de nada eu acredito. Mais uma vez as palavras fluiam sem emoção alguma. De forma irritantemente compreensível.
- E já que você não sabe de nada...
Ele retira da valise um grande alicate de corte.
... irei primeiro "arrancar", veja que irônico, sua língua e seus dedos, para que não possa falar, escrever ou fazer jestos simples afim de comunicar qualquer coisa, pois você não sabe de nada mesmo.
Ah, já ia me esquecendo. Gostaria que soubesse quão vã será sua morte e seu sofrimento...
Estive de viajem recrutando informações. Tenho informantes muito bem qualificados em diversas áreas, inclusive na Academia Militar das Agulhas Negras, e estes me contaram sobre um estranho acontecimento. Oficialmente, um batalhão do contingente fronteiriço do exército brasileiro foi massacrado por integrantes da ASFARC, há dois meses.
Extra-oficialmente, na verdade, o exército brasileiro desenvolveu nessa data uma nova tática de combate. Eu a apelidei de "Barril de pólvora", consiste em se aliar a facções criminosas com a promessa de benefícios mútuos duradouros, armar os integrantes desta facção, arquitetar um ataque traiçoeiro em pontos ou momentos estratégicamente oportunos e lançá-los em um ataque solitário, com a desculpa de que os soldados do exército não podem aparecer de imediato. Mas isto é pensado de uma forma que a imperícia dos atacantes os faça sucumbir. Assim, os criminosos são aniquilados pelos atacados, que, no entanto, se enfraquecem o suficientes para serem massacrados pelo exército, que deixará como responsável pela ação aquele que melhor lhe convir. Na experiência com homens do próprio exército, os integrantes da ASFARC foram os responsáveis, nas invasões em favelas, intuito principal desta tática, o "Glorioso Exército Brasileiro" o será. Então Bilé, viu como é feio falar mentiras? A propósito, perdi algum detalhe? Ou já falei mais do que é do seu conhecimento?
O traficante não podia acreditar... O fracasso do ataque era parte de um plano? Quem era aquele infeliz afinal??!? Como ele podia saber dessas coisas?
- Bem, chega de conversas Bilé. Temos dezoito minutos ainda. Não quero desperdiçá-los. Você poderia abrir a boca, por favor? Alguém que visse aquela cena isolada do contexto o tomaria por um simpático dentista fazendo seu trabalho, tão triviais lhe sairam as palavras.
- Abra a boca, vamos lá. Se não abrir irei quebrar seus dentes até sua língua aparecer.
- Eu não sei! Para!!! Eu não sei!!
- Bilé... não sei se você percebeu... mas, não perguntei nada.
Ele não havia perguntado nada. Ele não queria respostas. O traficante sentia mais medo do que jamais imaginara ser possível sentir.
- Eu ouvi que eles vão atacar amanhã! Três da tarde!! É tudo que se... Sua boca fora tampada. O homem de trajes negros com a mão direita firme sobre sua boca o olhava atentamente. Percebia em seu rosto sulcado pelas drogas os traços do pânico. Percebia também as profundas olheiras em sua face...
- Quando o capturaram? Pergunta a Celão, o homem de cinza.
- Hoje, por volta das três da manhã. Faz diferença?
Ele olha no relógio e muda do cronômetro para o horário normal. 14:59. -Bem... então... será que o amanhã que ele ouviu é hoje? Ei, Jonas, sai dessa jan...
Um estampido e o cérebro de Jonas se espalhou pelo cômodo. Uma saraivada de balas ricocheteava em volta. Era agora. Iriam acabar com aquele império do crime e ficar com os louros da vitória. O homem de preto pensa mais rápido do que nunca. Pega a arma de Jonas e se posiciona atrás da porta. Celão tenta se levantar e é atingido. Não dá pra contra-atacar. Duas pistolas contra o exército. Contra um batalhão de soldados! A morte é certa. Mas ele odeia certezas, prefere o inebriante sabor das dúvidas. Na linha de frente, apenas soldados... Nada dos comandantes que conhecem os rostos de seus agentes.
O homem se levanta e começa a desamarar o prisioneiro. Bilé, ainda atordoado, não compreende o que ele pretende fazer. Ambos estão fora do campo de visão oferecido pela janela. Ele coloca Bilé de pé, próximo a porta, apontando as armas o obriga a se despir, se afasta um pouco com cuidado e tira sua prórpia roupa. Veste as roupas do bandido e passa as suas para serem vestidas. Atinge com uma das pistolas o próprio nariz e entrega as duas armas desengatilhadas para Bilé. Enquanto o traficante tenta engatilhá-las afim de reverter a situação o homem o empurra para fora do aposento. O que é para fora da casa que possui um único cômodo. Assim que cambaleia para a rua com duas pistolas nas mãos Bilé é atingido e cai agonizante. Lá dentro o homem coloca o capuz e amarra os próprios pulsos na cadeira.
Passaram alguns minutos. O ataque deve ter sido simultâneo em diversas localidades. O Chefe está morto. Os tiros cessaram. Ele ouve passos se aproximando e os gemidos agonizantes do morimbundo à porta de casa. Cessam os pasos. Um gemido. Um tiro. Um bip do relógio, indicando que a contagem regressiva zerou.
Os soldados entram e tiram o capuz.
- Bom trabalho rapaz! Hoje pegamos todos os peixes grandes daqui! O coronel Moura quer falar com você, vamos lá. Ele desamarra os pulsos do homem. - Ih cara... acho que quebraram seu nariz.
Eles colocam-no no furgão. Ele sabe que ali está indo para a morte. Fecha os olhos e o balançar do carro o lembra o movimento de um rio. Sim, aquele é o seu Aqueronte. Ele remexe os bolsos e encontra uma moeda. Será que aquele jovem suicida ainda estaria na margem? Não... sua viajem já fora paga, o próprio homem de preto, agora em roupas maltrapilhas e ensanguentadas havia pago sua ida.
Ele olha pela janela em busca de algum pintor escondido por entre os prédios. Mas ele não vê pintores, e sim um grande prédio, um hospital. Nada de morte certa! O homem cambaleia e sussura que precisa de um analgésico, pergunta se não pode parar pra fazer um curativo simples. Ou apenas para pegar um remédio. O soldado reclama, diz que estão com pressa, mas dá a ordem de parada. O homem sai se arrastando, parece tonto, é a perda de sangue. Uma enfermeira oferece ajuda. O põe em uma maca e o leva para o interior do hospital. No corredor principal um médico o examina rapidamente.
- Façam uma radiografia. Você é alérgico a algum medicamento?
- Há outra saída do hospital?
- Você é alérgico? Responda, rápido!
- Há outra saída?
- Enfermeira, acho que o paciente está delirando...
- Não sou alérgico a nada, vamos conversar doutor. Por onde as ambulâncias saem?
- Pela garagem, do subsolo para a rua. Agora se acalme e...
Para a surpresa do médico seu paciente tonto e disperso se levantou totalmente reestabelecido. Fez um gesto de agradecimento com a cabeça, pegou uma gaze, começou a limpar o sangue no rosto e entrou no elevador. Saiu no subsolo e partiu para a rua. Não precisava de médicos. Seu nariz não estava quebrado, ele sabia muito bem como quebrar um nariz ou apenas o fazer sangrar. Agora ele pasava por entre os prédios, parou um táxi, ainda com a gaze no rosto, e pediu para ser levado até o terminal rodoviário. Iria viajar. Não tinham um nome, sequer viram um rosto intacto para seguirem. Parece que Átropos não se animava a cortar-lhe o fio da vida hoje. Seu nariz o incomodava, mas ele sabia que estava bom, mesmo sangrando, ele ainda era capaz de sentir o cheiro de pólvora...

4 comentários:

André M. Oliveira disse...

Bem pessoal... exagerei nas dimensões da história, ou não. Espero que tenha tido fluidez suficiente para ser legivel. Aguardo os comentários.

Stéfs disse...

Ah Pika...assim não vale!
Eu não vou escrever mais texto nenhum desse jeito!O nível tá muito elevado!

Desculpe os termos mas...
PUTA MERDA,TEXTO FODA DO CARALHO!=p

Cara, ficou MUITO mas MUITO bom, SENSACIONAL!
As minhas palavras são pífias perto de tudo isso!
E como sempre...parabéns!

Beijinhos!

-Tá vendo só eu n te abandono no blog! hehe-

Anônimo disse...

nem li

HAUUAUHAUHHAUHAUHAUHAU
sacanagem, li sim... mas já vi esse filme ai também...
bacana... bacana...

Wolv disse...

Cara... cs tão atingindo um nível de intertextualidade fantástico!!
Parabéns a todos!!