sexta-feira, 22 de maio de 2020

Irrisória conclusão

Habita em minhas entranhas um duende. Colorido, pequeno, barbudo e gaiato. Parece um gnomo. Ou seria um anão. Uma criatura. Que se desdobra em mil pra denunciar a comédia. Que se encolhe e abraça os joelhos quando a tragédia grita em seus olhos.

Não questiona, apenas reage. O questionamento fica pro que acham que tem que ficar. Tão ricos quanto infindáveis. Traveste-se de ciência, saúde, mas não passa do exercício clássico de dinamizar pensamentos em existência. Tão sem nexo quanto humano.

O pequenino ser se ajusta como pode, mas atira-se ao chão na tentativa de fazer-se atendido. Infantil, quer o que quer, na hora que quer. Faz o que quer. E quando não é atendido, irrita-se, faz manha, tem "tantrums". Surpreende. Me encanto ainda com sua capacidade inata de, ao mesmo tempo que tem de prostrar-se como um pedinte esfomeado, trazer o mundo aos seus pés. E o mundo o responde com amor.

Diria que sábio, sabe que recebe o que promove. E se cansa, chora em seu canto engolindo a dor de estar dado desequilíbrio no dar e receber. Senta-se e contempla a comédia com lágrimas, achando bonito as estranhas formas que o universo pertina nas sinapses aleatórias de que há sim, equilíbrio entre todas as coisas. É como crer na sabedoria milenar, sacra, é como crer em Deus.

Se Deus é como concebido, é inclusive um duende desalmado que habita estômagos vazios.
"Fez o homem à sua imagem e semelhança".
Deus então, hoje
Usa máscara.

quarta-feira, 20 de maio de 2020

Autoignorância

A fumaça daqui não é de fumo,
Mas de incenso

E não tem vinil,
Mas live

Os livros variam entre digitais 
E impressos

Há um charme nas coisas de tempos anteriores
Eu enxergo

Faz tempo
Que não passo mais de uma hora em silêncio

Ouvindo o silêncio
Curtindo o silêncio

Parece urgência ouvir porque posso ouvir
Mesmo podendo escolher se ouço ou não

Faz tempo também que ignoro minha tristeza
Talvez por isso nunca me boto em silêncio

Com outros estímulos, jamais pensarei no que me tomaria tempo
Quando nada mais toma

Talvez por isso eu passe o dia ouvindo tudo,
Sentindo o cheiro

Ouvindo e vendo
Ouvindo e lendo
Ouvindo e teclando

Só faltou ouvir e falar 
E só não falo porque não tem com quem

(O século 21 é assim: tudo chega muito o tempo todo em mim, e nada sai).

quarta-feira, 13 de maio de 2020

Se eu te visse hoje

Se eu te visse hoje
Te roubaria um beijo
Te leria mais um poema
E falaria qualquer bobeira dele
Só pra te impressionar

Também inventaria um
E te pediria pra cantar as canções 
Perdidas no tempo
Em que não te vi

Se eu te visse hoje
Eu provavelmente faria tudo aquilo
Que eu sei que você quer que eu faça
E te diria
Eu também quero

Eu naturalmente te faria rir
E riria mais ainda
Porque é o que eu faço
Quando mato saudade

Se eu te visse hoje
Talvez não encontrasse motivos pra te escrever
Estaria ocupada demais vivendo
E não sei se isso é bom ou ruim

Se vivo enquanto escrevo
Ou morro cada vez mais
Porque vivo
Só sei que o hoje não te tem 
E eu espero que o amanhã sim.

segunda-feira, 11 de maio de 2020

O olhar de quem quarentena

Um passante com uma flor em mãos. Quatro da tarde. Seis continentes. Duzentas mil mortes. Duzentas mil vidas. Um observador de sua sacada. Muitos carros. Milhões de indagações. Nenhuma explicação. O passante mascarado passava. As horas corriam. O observador observava. O mundo girava, enquanto parado, por mais uma jornada. Parado para quem? Era dia e então já era noite. Às vezes o observador trocava um pelo outro. Dessa vez, por ter conseguido ver tão bem, era dia. Parecia injusto o passante passar com tanta objetividade carregando aquela flor. O observador só poderia imaginar o porvir da cena, mas nunca saberia. Como ficam as histórias de amor quando todos são obrigados a ficarem distantes? Há uma lacuna na vivência de contos da Terra? É esse mais um conto coletivo? Talvez todos os amantes desrespeitem um pouco o decreto de isolamento. Talvez pudessem morrer de tristeza, em vez de virose. Talvez os duzentos mil mortos também o fizessem, estivessem eles vivos para amar.  Talvez aquele passante estivesse indo amar alguém em segredo, sem saber que era observado; sem saber que o maior desejo de quem o observava era, também, poder amar, sem carregar nas costas o peso de todas as vidas que continuariam a ser amadas quando tudo passasse, se não estivessem perdidas. 
O passante passado e a injustiça aceita fizeram o observador quitar seu olhar para baixo. Olhou, agora, duas horas depois, para o céu. Já havia uma estrela. Uma pipa apareceu e rapidamente sumiu por trás de outra casa. Uns oito pássaros iam e vinham. Talvez contar o tempo, os pássaros, as pipas, as estrelas, preenchesse um pouco aquele vazio que parecia existir no mundo... em si, já que não se podia contar com a colaboração de outras pessoas para a contenção de um mal global. Da sacada, o observador observou tudo: o passante passar, os elementos da mesma paisagem de sempre, o dia virar noite, a dor do mundo, a dor de si. Fechou o lado de lá junto à porta que o conectava com ele – a da sacada –; abriu a porta de dentro para primeiro se curar. Depois, quiçá, permitir-se-ia indagar mais. Pode ser que daí viesse alguma resposta. Que aquele passante vá e ame e volte protegido de sua aventura, enquanto o observador se protege a esperar.