domingo, 20 de dezembro de 2015

Amor Metropolitano


Ela que entende a minha solidão
Trouxe a sua disfarçada de sorrisos
Para dividir comigo nessa cidade cinza

Ela que trouxe chuva
Para o Cantareira
Do meu coração

Ela que alivia
A minha certeza de Paulista
Com os seus olhos misteriosos
De Augusta

Disse que quer ficar
E não pensar em partir
Meu jeito sozinho de tão sozinho
Quer até não ser mais sozinho

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

A Primeira Canção - Parte I: Dez Horas



      Branca estava passando manteiga no pão recém-saído do forno quando escutou batidas a porta. Naquele horário raramente vinham noticias boas e seu coração tremeu antes de abrir os trincos.

        O rosto conhecido sorriu ao vê-la. Estava trajado como quem estava pronto partir a qualquer momento. Essa constatação colaborou para que os temores da clériga se concretizassem, e não correspondendo ao sorriso falou:

- Vocês mal voltaram e já vão partir?

- Bom dia Branca, sei que é cedo, mas preciso falar com Rossat. Espere, que cheiro é esse? Hum... Deve ser um dos seus divinos quitutes! Essa é uma daquelas conjunções astrais na qual você coloca seu dom da culinária em prática?

- Andrew, sabe que detesto cozinhar e só faço isso em momentos especiais, tipo quando vocês voltam de uma longa campanha. Mas parece que vou ter que comer sozinha.

- Não diga isso, trouxe importantes notícias para tratar com o mago rabugento e muita fome para que esses magníficos pãezinhos não tenham que conhecer o dia de amanhã.

- Vou chama-lo, mas se você o devolver como da última vez, você vai precisar de uma boca nova para contar as suas histórias, já que vou arrancar todos os seus dentes.

A pequena clériga tinha um olhar feroz e ao se virar para dentro da casa viu os pés de Rossat descendo as escadas.

- Não precisa me chamar, já levantei – disse o mago com bandagens visíveis por baixo da camisa de linho no tórax e no braço direito – o que é tão importante que precisa me chamar tão cedo? Você esqueceu a regra de que más notícias só depois das dez horas?

- Não é exatamente uma má notícia, então acho que posso usar um horário digamos... alternativo.

        Branca colocava mais um prato na mesa simples e o trio, após uma breve oração, começou a partilhar o café com o deleite de quem sabe que pode ser a última refeição que será feita dentro de muito tempo. Andrew estava um pouco desconfortável com a situação, mas a urgência do caso lhe obrigava a ter que agir dessa fora.

        Após um breve momento de amenidades, o bardo ficou com semblante sério e com um tom de voz mais composto relatou o motivo de sua vinda.

- Velho amigo, sei que muitas aventuras já fizemos e muitas outras estão por vir, seja em nome da Companhia, seja de forma mais discreta. Todas as vezes que sugeriu algo, mesmo com destino nebuloso, aceitei e espero que agora não pestaneje em diminuir esse débito comigo.

        O silêncio posterior a essa fala foi rompido por um galo que anunciava os primeiros raios de sol da manhã e complementando sua petição Andrew continuou.

- Através de um sonho, os antigos mestres me contaram que é a hora de partir em direção a um lugar muito especial, que somente bardos cujas músicas começaram a ecoar pela eternidade tem permissão de ir.

- Ufa, então não temos problemas, porque suas músicas ainda não foram tão longe – afirmou Rossat por trás de um sorriso que tentava quebrar a seriedade da situação.

- Por mais improvável que pareça, é verdade – o bardo falou com um olhar irônico – tão improvável quanto você conseguir derrotar um tigre-demônio.

         Branca que até o momento estava apenas observando a história cortou as brincadeiras da dupla.

- Onde diabos é esse lugar? E se só os bardos podem ir, por que está querendo a nossa ajuda?

- Essa é a questão, o lugar é em um templo nas montanhas de Tiloudes.

- Nunca ouvi falar desse lugar – deu Rossat de ombros, mas a sacerdotisa completou – Está maluco? Aquele lugar é maldito! Poucos foram até lá menos ainda voltaram! Pode tirar seu cavali... seu banjo da chuva e ir sonhando com outra coisa.

        Andrew sabia que a braveza de Branca era por querer o melhor para todos, mas ele tinha que cumprir seu chamado e contava com a ajuda do mago.

- Podemos nos teleportar para lá e voltamos antes do próximo amanhecer.

        Tentou aliviar o arcano.

- Infelizmente não será tão fácil, magias de deslocamento espacial não funcionam por lá, podemos no máximo chegar a uma cidade alguns dias de viagem das montanhas.

         O clima voltou a ficar tenso.

- Ai ai... Sem problemas, só preciso de algumas horas para terminar de arrumar alguns preparativos e que a Branca me ajude com os curativos.

- Você sabe que se eu adiantar a cura, vai ficar com mais cicatrizes, né?

- Sei... Serão apenas mais algumas para a minha coleção – minimizou o mago com um sorriso que fazia seus olhos quase fecharem.

- Então estamos acertados, volto umas dez horas para irmos.

- Talvez eu esteja pronto antes...

- Não precisa. Dez horas eu volto e te conto o resto da aventura – disse Andrew enquanto levantava da mesa e pegava o último pãozinho.

domingo, 29 de novembro de 2015

Verdades baratas


Certas noites você não pode
Aturar as mentiras que a realidade diz
Nessas noites aconselho
Apelar para as mais miseras certezas
Que a vida pode fornecer ao homem

Vinho barato
Com a promessa
De fragmentos de um destino certo,
Dois para ser mais específico, 
Alívio imediato e dor de cabeça na manhã seguinte

Além de fornecer
Uma surra
Que sua língua nunca
Ou nem tão nunca
Esquecerá

Recomendo misturar
Com elevadas doses de jazz
Na maneira correta como foi concebido
Para ser usado
Com os sons incessantes de uma cidade que ruge ao fundo

Se tiver inspiração até um pouco de arte,
Mas com o devido cuidado
Para evitar overdoses,
Visto que amanhã é dia de branco
Ou de qualquer outra cor para o qual você tenha alugado a sua existência

Pensando bem
Esqueça a arte
Ela só vai te cuspir verdades que você
Assim como eu, escolheu ignorar

Se for um viciado
Que não possa ficar abstêmio,
Busque coisas em idiomas que não entenda
Vai por mim

Por serem baratas
O público não espera muito
Quando tiver que encerrar
Apenas
Encerre.

sábado, 28 de novembro de 2015

Soneto Sinestésico

Deitados encima
De onde o tempo
Se esconde

Somos bateria
Trompete
E piano

Seu toque
De tão suave
Me faz
música

A melodia
Em uma espiral
Me inspira e expira
Para o nosso Universo

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

A morte


Faz tempo, não me lembro direito quando,  mas o que lembro é que foi em uma manhã. Meu sono foi perturbado por um delicado chacoalhar que foi aumentando de intensidade até me arrancar do reino de Morpheu, ainda atordoado, com a vista recuperando o foco e se adaptando aos poucos raios da luz matinal que entravam pela janela vi minha morte ao lado da cama.

Nunca a tinha visto antes, mas ao fitar seu semblante soube instantaneamente que era a minha morte, só tive tempo de uma breve oração antes dela começar a falar.

- Pode parar com isso, não vim para te levar agora, vim apenas te falar que hoje eu posso te levar, então é bom começar a arrumar as coisas.

Tentei argumentar,  mas antes que as palavras saíssem ela já não estava mais no quarto. Corri feito um louco, tomei o melhor banho da minha vida, pois tinha a certeza que era o último,  tomei o café com a mesma certeza, falei com todos que quis, escondendo a mesma certeza, pois achei melhor evitar prantos desnecessários antes da hora.

O dia voou e nem sinal da minha morte, fui dormir com a certeza que seria durante o sono que ira passar dessa pra melhor.

De repente sinto o agora conhecido chacoalhar e ao abrir os olhos vejo novamente minha morte.

- Estou pronto - digo com a mais digna certeza - pode me levar para onde for.

- Levar?

Acho que escuto uma risada, se é que a Morte pode rir.

- Não vou te levar, só vim dizer que posso te levar hoje.

Fico atônito.

- Não foi isso que você me disse ontem?

- Sim e direi isso todos os dias pelo resto da sua vida para que nunca se esqueça que estou a um passo de distância,  todas as suas ações devem ser guiadas com a convicção que posso te levar a qualquer momento.

- Devo viver como se não houvesse amanhã?

- Não vim te dizer como deve viver. Vim apenas dizer que estou sempre por perto.

E assim ela desapareceu novamente.

Nos primeiros dias corri para fazer tudo que me desse vontade,  sempre sendo acordado nas manhãs pelo meu insólito despertador, mas os dias foram passando e meu único encontro com a ceifadora era no despertar.

Isso foi me dando confiança para tentar coisas de mais longo prazo,  buscar a ocupação que queria, o relacionamento que desejava, fazer os exercícios que achava interessante, tudo isso sabendo que podia ser a minha última ação,  pensava "se morrer agora, morrerei tendo feito o que quis ".

Teve vezes que tentei barganhar, por motivos mais e menos nobres, as vezes quis negociar alguns minutinhos mais na cama e em outros implorei que ela me desse a garantia que não me levaria pelo menos enquanto os meu filhos fossem pequenos,  mas independente da nobreza dos meus pedidos,  ela apenas falava que poderia me levar a qualquer momento e desaparecia.

Os anos se passaram e a quantidade de sacolejos necessários para me despertar iam aumentando. Foi então que um dia a minha Morte ao entrar no quarto ponderou se deveria me conceder os tão pleiteados cinco minutos, mas ao ver meu sorriso enquanto dormia, sorriu também e me deu muito mais do que cinco minutos,  me deu a eternidade.

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Campo Belo




Essa história aconteceu lá pras bandas das Gerais
Na Zona da Mata mineira, na fazenda de meus pais
Tinha lá uma cachorrinha tão bunita de se vê
Mas aconteceu que a coitadinha
por ficar muito véinha
acabou-se por morrê.

Nóis menino ficamo triste c'a morte da companhêra
Num tinha mimo de mãe que acabasse c'a choradêra
E nosso amado pai que num guentava tristeza vê
disse ansim pra nóis menino:
" De manhã vamo à cidade, passeá pr'espairecê"

Dispois de um di'inteirinho, já na hora de vortá
Ouvim'um barui'squisito e viramo pra oiá
Bem na beira da estrada tinh'um filhote latino
Parecia que chorava bem ansim com'os menino
Mas não era para menos que lamuriava sua sorte
Na moita bem atrás dele, encolhida num cantinho
Jazia sua mãezinha e mais uns irmãozinho
e todos dormia quietinho abraçados com a morte.

Levamo pra casa então aquele cachorro de sorte
Tratado a leite com pão o pequeno cresceu forte
e ao companheiro bonito que tinh'os pelo amarelo
por sugestão dos menino dem'o nome de Campo Belo

Campo Belo cresceu longe, distante de seus semelhante
o cachorro mais próximo morava muito muito adiante
talvez seja por isso, por não tê quem imitá
que Campo Belo foi então nos bezerro s'ispeiá

Mamava nas vaca de dia, passava as noite no pasto
pra ficar mesmo igual bezerro só lhe faltav'os casco
Campo Belo foi'squecendo como que era latí
e juntamente aos bezerro foi aprendendo a mugí
inda igualzinh'aos bezerro que tinha medo de gente
o cachorro fugia ligêro quando nos via na frente
Inté n'ora de crescer Campo Bel'os imitou
do tamanho d'um garrote nosso cachorro ficou
seu semblante dava medo, nos bixo, na gent'e nos otro
o padre inté ispaiô que nóis vinha criand'um monstro

Inté que aconteceu duns ladrão chegá no arraiá
as fazenda de todos vizinh'eles vier'à robá
mas de ver o Campo Belo com nosso rebanho a pastá
os ladrão fugiro de medo
achando que aquele mostreng'os iri'atacá

a nossa fazenda foi sarva pelo cão-boi monstruoso
mas isso fez o padr'e nossos vizinh'odioso
eles passaro a dizer que nóis fazia bruxaria
e foro atrás do cão-boi
com foice e faca na mão, fazend'uma gritaria

Campo Belo sumiu, ninguém sabe pr'onde foi
correndo daquele povo que caçava o cão-boi
num sei se por medo ou bondade
pra alegria do padre, o cão-boi tinha fugido
Ficamo triste de novo, sentindo uma baita saudade
daquele cachorro monstruoso
que agente tinh'acostumado a chamar de "meu amigo"

Mas eu te asseguro, Campo Belo ind'anda por lá
pois lugar mais seguro que nossa fazenda não há
os ladrão que antes fugiro acabaro por vortá
mas mal negócio foi esse de vortá pra nos robá
numa noite escura e fria, sem lua pra lumiá
nóis ouvim'um som estranho que fez os pelo arrupiá
parecia um cão e um boi e dois homi a gritá

na manhã do dia seguinte os ladrão foro encontrado
dois corpo posto no chão e do avesso virado
tem que ser do Campo Belo o urro estranho que ouví

pois nunca vi um boi que late e cachorro num sabe mugí

quinta-feira, 11 de junho de 2015

A prisão inescapável

Meu corpo é minha prisão inescapável
Estou confinado por uma muralha de células
Músculos em rebelião e dor paralisante
Me encarceram diariamente

Além dos muros físicos outra barreiras se levantam
Rotinas tentam me automatizar
A transformação em construto nubla os pensamentos
A ilusão de Maya testa minha vontade

Apesar do destino certo
A morte é apenas a realocação em outra prisão
A transcendência ocorre apenas pela arte
Arte de subverter a prisão
Arte de transformar
Arte de Ser

quarta-feira, 3 de junho de 2015

Sonhos Indomáveis

Tenho sonhos maiores que meu sono
Sonhos que me tiram o sono
Sonhos que me consomem
Digerem, corroem

Sonho com lugares distantes
Outras civilizações
Outras realizações

A realidade tenta extingui los
Mas acaba sendo moldada por eles

Sonhos indomáveis

domingo, 17 de maio de 2015

Carta para o meu futuro afilhado

Jair,

Faz algumas horas que você nasceu e esse acontecimento fez o dia de hoje ser um dos dias
mais felizes da minha vida.

Como já estou nesse mundo a algumas horas a mais que você, gostaria de te dar algumas
dicas.

Mas antes de tudo Bem Vindo! Esse é o Mundo! Existem muitos coisas legais para se fazer
por aqui, muitas coisas para se ver, provar, conhecer... Existe pizza! Isso é uma das melhores coisas
que tem por aqui, é meio difícil de explicar o quão gostoso é, mas fique tranquilo, pode deixar que
te mostro... Opa, estou me desviando do assunto!

Aqui você também pode fazer muitas coisas, rir, brincar, dançar, cantar, mas sinceramente,
eu não sou muito bom nessas duas últimas coisas que dei de exemplo, mas juntos podemos tentar
melhorar minhas terríveis habilidades.

Ah! Uma coisa importante sobre rir, tente não fazer isso enquanto bebe Coca Cola, ela pode
acabar saindo pelo seu nariz e fazer uma sujeirada, por mais engraçado que seja ver alguém fazendo
isso, quando acontece com a gente não é tão legal assim.

Ok, isso foi estranho, mas existem muitas coisas estranhas nesse mundo e conhecê-las
também é importante.

Nas muitas futuras horas da vida, algumas serão muito boas, outros não, alguns horas você
irá ganhar sorvete, em outras não, mas sempre procure motivos para rir! Só lembre daquela dica
sobre a Coca Cola.

Você via encontrar muitas pessoas na sua vida, algumas delas vão ser muito legais e
simpáticas enquanto outras serão mal educadas e irritantes, mas não fique bravo com elas, as vezes
só tiveram um dia ruim e assim que esse dia passar elas voltarão a ser legais.

É importante lembrar que sempre vai poder contar com a sua família! Sua mãe. seu pai e
seus irmãos sempre irão te amar, mesmo que te deem broncas de vez em quando e pareçam malucos
em algumas horas.

Além disso, você ganhou de brinde mais dois super parceiros, eu e a sua dinda Laura!

Vamos sempre te apoiar e batalhar para que seja a melhor pessoa do mundo!

Das coisas que eu posso desejar, espero que você tenha coragem para mudar as coisas que
precisam ser mudadas, inteligência para aceitar que algumas coisas não podem mudar e sabedoria
para conseguir distinguir uma opção da outra.

Meus mais sinceros votos de felicidade,

Com amor,

Tarso J. M. Santana

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O blogger havia deletado esse texto, por isso estou adicionando-o novamente.

domingo, 5 de abril de 2015

Soneto Errado


Minta para mim
Minta baixinho
Minta como se eu fosse importante
Minta sua mais doce mentira

Prometo apenas mentir também
Mentirei como se houvesse algo aqui dentro
Como se essa noite fosse inesquecível
Como se não fosse o vinho falando

E acreditemos
Acreditemos em nós
Acreditemos na lua que não vemos

E vamos sonhar
Sonhar que isso não irá passar
Sonhar que não estamos mentindo.

quinta-feira, 19 de março de 2015

Companhia do Tigre Branco - Histórias Ébrias


É impressionante a quantidade de lama que  pode ficar presa na roupa quando se está andado a cavalo em um lamaçal durante uma das piores tempestades que vi nesses últimos anos.

Resolvi adiantar minha chegada, já que os batedores que enviei ainda não deram notícias. Confio plenamente na capacidade deles,  já os vi lutando contra coisas que fariam pessoas normais terem pesadelos por anos e saírem de situações que até hoje me fazem pensar se realmente aconteceram ou não passavam de um delírio.

De qualquer forma, já se passaram dois dias desde a data combinada e dei ordens expressas sobre o quão importante era me manter informado e ser o mais discreto possível na chegada à Rafrin.
Essa cidade cresceu muito em pouco tempo, todos vieram para cá tentar a sorte já que as principais feiras do reino agora passam por aqui, mas não são só louros que essa cidade guarda, os crimes estão cada vez mais constantes e o prefeito da cidade havia nos sondado sobre problemas com uma guilda de ladrões que tem atacado as caravanas da região.  Esperava que Andrew e Rogy me atualizassem sobre a situação, mas pelo visto eu mesmo terei que descobrir.

Já é tarde e nessa chuva somente estabelecimentos de reputação questionável estão com suas portas abertas. Putas com frio me vêem passar e nem se dão ao trabalho de me convidar para entrar em seus salões de ofício. Me abaixo um pouco para ver de cima do cavalo as janelas das tabernas abertas e mesmo a metros de distância sei que é  na "Taberna do Calcanhar de Chumbo" que devo entrar.

A voz de Andrew era mais alta do que o barulho da chuva e antes de entrar espiei pela janela vendo que sua face estava mais rosada que o normal, algo me dizia que era por causa das cinco ânforas de vinho que estava espalhadas pela mesa.

Minha entrada mal é notada, estava com uma capa e capuz escuros que mal deixavam ver meu rosto e a camada de lama impossibilitava qualquer identificação.

Em uma olhada rápida vejo que a taberna não é muito grande, com pouco mais de cinco mesas e um pequeno palco onde pude ver um conjunto de músicos olhando feio para o meu amigo,  pois ele era o centro das atenções naquele lugar. É comum os bardos estarem nessa posição,  mas Andrew era especialista nisso. Ele arranhava tocar um pouco de violão e flauta, mas era ao contar histórias que ele mostrava seu verdadeiro dom. Ele falava e as pessoas ouviam, simples assim.

A família de halflings que pelo que inferi era dona do lugar se esforçava para dividir a atenção entre atender os pedidos e ouvir as histórias. A mais nova, que deduzi ser a filha do casal que estava atrás do balcão já  havia largado a bandeja e estava sentada próximo do bardo ébrio.

E foi assim que prendi a demonia de cabelos vermelhos na privada de uma estalagem no caminho para a Fortaleza do Orc.

Gargalhadas  eram ouvidas e olhares de descrença eram lançadas ao final da história e ele continuou:

- E agora, qual história querem ouvir?

A filha do taverneiro com os olhos brilhando, pediu:

- O senhor disse que era da Companhia do Tigre Branco, nos conte porque ela tem esse nome,  se não for pedir demais...

- Essa não precisa ser um bardo metido a besta para saber - gritou um dos músicos até então ignorados no palco - é por causa dos cabelos brancos do líder deles.

Andrew sorriu com o canto da boca e percebeu que aquela era a sua deixa.

- Muito bem, meu desafinado amigo, você está certo. Mas a pergunta que os senhores devem se fazer é porque um homem que mal chegou aos trinta anos, já está com os cabelos tão brancos!? A resposta para essa pergunta é um dos segredos mais bem guardados da nossa Companhia, mas como vocês ou melhor, quase todos vocês, se mostraram um público tão digno, revelarei, mas espero que não contem para ninguém...

Eu já ouvi dezenas de versões dessa história que Andrew conta sempre que está bêbado,  algumas são trágicas outras fantasiosas demais,  mas sempre gosto de ouvi-las. Antes de me revelar, deixarei o rapaz contar essa última história.

- Vocês já ouviram falar no Tigre Branco do Oriente?

Um arrepio subiu pela minha coluna,  ele não deveria ir tão longe em suas brincadeiras,  receoso com o que poderia ser revelado, continuei a ouvir. Ele empostou a voz e deu seguimento.

Muito longe, lá depois de onde o sol da manhã nasce, existe uma terra de mistérios e magia tão antiga quanto o próprio tempo.

Lá homens tentam descobrir a verdade e muitos não voltam, seja por sucumbirem as vicissitudes do caminho ou por acabarem por descobrir que os monstros que habitam dentro deles são muito piores do que as bestas que espreitam na noite.

Estávamos em um grupo de mais de 20 homens, cada um mestre em sua especialidade, passamos dias perdidos em desertos tão secos que secavam nossas lágrimas de fome antes mesmo delas saírem dos olhos,  cruzamos montanhas que uivavam dia e noite e no vento escutamos a morte nos atraindo para precipícios sem fundo. Tudo isso para chegar nas matas de Malaysa, onde um dos piores demônios do mundo habita, o temível Tigre Branco do Oriente.

- Mé... até parece, não há ninguém que foi tão longe! E esse lugar não passa de uma lenda! Esse tal de tigre não passa da invenção de um bêbum.

- Então me explique como alguém pode ter uma ferida como essa - disse Andrew enquanto levantava a manga da camisa e mostrava um ferida que tinha aproximadamente 15 centímetros e sua cicatriz era de um púrpura profundo - nenhuma criatura desses lados do mundo deixa uma marca parecida.

A visão do ferimento espantou toda taverna e fez calar o nêmesis desafinado do bardo. 

Eu estava ficando cada vez mais preocupado com os rumos que aquilo estava tomando. Existem histórias que não devem ser contadas.

Algumas lições devem ser aprendidas ao se enfrentar criaturas mágicas de outros continentes, e a principal delas é: Elas nunca estão sozinhas.

Nosso grupo já estava reduzido a quatro pobres coitados, os outros ficaram pelo caminho, um deles foi devorado por uma trepadeira cantante de Yr, o que é uma visão no mínimo curiosa, mas isso é uma história para outro dia.

Chegando no que seria o esconderijo da tal criatura notamos que haviam outras vozes dentro da caverna, pois seu som ecoava e reverberava por entre os labirínticos salões do local. Rossat que já era nosso líder na época, demorou poucos segundos para compreender que aquilo que ouvíamos era um feitiço de subjugação e pelo nível daquele ritual uma força ainda mais medonha  estava operando naquele lugar.

Passamos por uma série de armadilhas que com a ajuda fundamental de Nadiram, nosso habilidoso e - por vezes flertador com a morte - ladino, foram abrindo caminho até o nosso derradeiro encontro.

Em um salão com mais de cinquenta metros de altura, vimos a colossal fera em um círculo mágico se debatendo contra correntes de uma luz maléfica que tentavam subjugá-la. Ao seu redor, três mulheres vestidas de preto estavam em um transe hipnótico.

Rossat tomou a dianteira e bradou:

- Identifiquem-se seres das sombras! Vocês estão entre mim e minha conquista, saiam agora e nada de mal lhes será feito.

Uma maligna gargalhada foi ouvida, gelando nossos corações e fazendo Pietro correr como se não houvesse amanhã. Ele não estava de todo errado, se continuássemos  ali, não haveria amanhã.

A voz não vinha de nenhuma das mulheres, mas das três ao mesmo tempo. Tudo ficava um pouco mais morto a cada palavra que ela pronunciava.
- Quem seremos essa noite, minhas irmãs? Acho que Camila é um bom nome. Somos Camila, estrangeiro. Quem é você?

- Podem nos chamar de Gabriel - disse Rossat com um sorriso ameaçador no rosto, desafiando as bruxas. 

Mesmo sem trocarem mais nenhuma palavra, podia sentir o ódio delas vindo em nossa direção. A temperatura havia caído uns dez graus e o silêncio que antecipa a tempestade foi rompido por um relâmpago que saiu das mãos da Camila do meio. Se tivesse olhos menos treinados não teria nem visto os gestos de preparação da magia e não haveria escapado.

Rossat tripudiou.

- Eu estou aqui! Na próxima tente ser um pouco mais precisa.

Ele abriu os braços como quem tenta abraçar a noite.

Os olhos das criaturas começaram a pegar fogo, bolas incendiárias foram arremessadas, mas a Barreira de Espelhos que Rossat conjurou nos defendeu sem maiores problemas. Sempre fico irritado e agradecido pelo fato dele não precisar gesticular nem falar nada para fazer os seus feitiços. Acho que ele aprendeu isso no tempo que passou em uma tribo no Deserto de Al-Birra. 

Estou perdendo o foco, me desculpem.

Tomem nota disso que vou dizer, ao trabalhar em grupo, tenha a certeza que pode confiar em seus parceiros, depois de compreenderem isso, tudo fica mais fácil. E eu confiava em Rossat e Nadiram, sabia que pelo menos um deles tinha um plano. Era bom eles terem um plano. E colocarem em prática logo.

A distração que o nosso feiticeiro havia criado deu espaço para que Nadiram se esgueirasse e incapacitasse uma das Camilas.

Pensamos que a vitória estava nas nossas mãos, mas não contávamos que com menos uma das inimigas o Tigre se libertasse tão rápido e arremessasse longe o ladino, fazendo-o bater a cabeça em uma pedra e desmaiar. 

A criatura devorou as outras duas feiticeiras malignas com uma gana aterradora e após isso voltou seus olhos brilhantes como estrelas explodindo em nossa direção e um mar de fúria tomou seu espírito.

Fazendo um rolamento lateral, tentei usar meu florete contra a vil besta, mas minha arma passou por sua etérea pele. Fiquei desesperado ao perceber que meu ataques seriam em vão e antes mesmo de bolar alguma artimanha, com uma patada também fui jogado para longe e ainda recebendo esse corte no braço da garra daquele demônio. 

Rossat ficou entre mim e a criatura, ele era nossa última chance.

- Então finalmente nos encontramos - disse ele com uma tranquilidade perturbadora - identifique-se criatura, para que possa ter certeza de que é você mesmo quem eu tenho que derrotar.

- Eu sou o Tigre Branco do Oriente! O Espírito da Vingança! Quem ouve meu nome sabe que deve temer!

- HA-HA-HA

Um silêncio constrangedor emergiu após a risada de Rossat.

- Vim de muito longe para obter o seu poder. Seu último hospedeiro está morto à 700 anos e nessa noite um novo pode tomar o lugar. Serei eu.

Eu não havia ideia que esse era o plano dele desde o começo, mas como diversas vezes ele mesmo havia me dito, quase pude ouvir sua voz em minha cabeça repetindo "Apenas confie".

- Você sozinho tentará me aprisionar?

- Não. Eu não tentarei forçá-lo a nada, você entrará por vontade própria. Se tiver coragem, é claro.

Dessa vez foi o Tigre que riu.

- Mostre-me o que pode fazer, criança.

Rossat estava com as palmas das mãos paralelas a poucos centímetros do seu peito. Nesse espaço se materializou o que parecia ser um coração de energia - arisco a dizer que era um pedaço da alma dele - e o Tigre entrou como se passasse por um funil.

A voz da criatura estava em nossas mentes, podíamos ouvi-la rugindo e fomos transportados para uma realidade paralela, lá o ser diabólico parecia menos diabólico. Lá ele transmitia a sensação que vemos quando observamos uma força da natureza, uma tempestade, onde não existe bom ou mal, apenas se é. A mesma força que enche nossos rios cria enchentes que levam tudo embora.

- Eu sou a personificação da Vingança e somente um coração que sabe o que realmente significo pode me receber. 
Teu núcleo clama pelo meu poder e dentro de ti posso me alimentar dos seus mais doces sentimentos. 
Tudo que existir de infame dentro de ti transbordará. 
Posso ver cada mentira, cada artifício, tudo. 
Posso te fornecer meu poder, até que você se torne eu.

- Você pode tentar, mas só usarei seu poder para o que realmente for importante, mesmo desejando a Vingança, aprisionarei estes sentimentos assim como fiz contigo e os usarei como combustível para a minha Verdade.

- Veremos até onde você consegue, criança.

Em um instante estávamos todos de volta a caverna.

Notei que agora os cabelos negros como o breu de Rossat estavam com algumas tiras brancas, como se fosse um tigre invertido.

Olhei para ele e falei:

- Se vamos continuar como um grupo, que ele seja chamado Companhia do Tigre Branco.

E rimos desmaiando no chão de cansaço.

A taverna estava em um silêncio absoluto, todos queria saber se existia algo mais.

Então, é isso. Foi assim que nos tornamos a Companhia do Tigre Branco.

A platéia estava ainda digerindo a história quando levantei e fui em direção a Andrew. Coloquei a mão no seu ombro e sem nem virar para mim ele falou:

- Gostou da história Rossat?

Revelando o meu rosto para os outros acenei positivamente com a cabeça.

A filha do taverneiro ao ver que meu cabelos estavam bem mais brancos do que apenas algumas tiras, levou a mão a boca e pressionou as costas contra o encosto da cadeira, fazendo-a quase cair.

- Você tem que parar de contar essas histórias para crianças, elas podem acabar tendo pesadelos.

- O que posso fazer? Eles pediram.

Trocamos algumas palavras sobre amenidades para deixar mais tranquilo o clima tenso que estava na taverna e assim que tive uma oportunidade de falar a sós com o bardo disse com a voz dura:

- Dessa vez você foi longe demais, isso foi quase o que aconteceu.

Sua ebriedade havia desaparecido e provavelmente nunca havia existido.

- Relaxa, eu sei o que estou fazendo.

- Eu sei, mas não faça isso novamente.

- Ok, ok, como você é chato.

- Onde está Rogy? Conseguiu as informações que pedi?

- Ele está lá encima com a outra filha do taberneiro - o que deve gerar uma confusão, agora que ele não está mais distraído - e já tenho tudo que precisamos, mas podemos fazer isso amanhã?

- Rogy. De novo. Tudo bem, amanhã damos seguimento com o plano.

- Claro.

Fomos em direção a porta na esperança de encontrarmos uma estalagem aberta e dessa vez ouvi um som vindo da chuva que não era a voz de Andrew, mas de um velho conhecido que está sempre me espreitando...

- Logo, criança, logo, logo... 

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Bem-vindo à Arena (Welcome to the Grind)

Levante e brilhe.

São 6 da manhã, você ainda nem desligou o seu despertador e as vozes na sua cabeça começam a dizer que está muito cedo, muito escuro e muito frio para sair da cama.

As dores no corpo começam uma rebelião, fingindo que seu cérebro não está ordenando-lhe para se mover. Uma legião de vozes está gritando em coro unânime para apertar o botão de soneca e voltar à terra dos sonhos.

Mas você não pediu a sua opinião.

A voz que você escolheu ouvir é uma que te desafia. A voz que diz que há uma razão para você ter definido esse alarme em primeiro lugar.

Então, sente, coloque os pés no chão e não olhe para trás, porque temos trabalho a fazer.

Bem-vindo à Arena

Cada dia será uma série de batalhas entre o caminho certo e o caminho fácil. Dez mil caminhos para o delta do rio surgem diante de você, cada uma prometendo ser o caminho de menor resistência.

A questão é que você está indo contra a correnteza.

Quando você fizer essa escolha, quando decidir virar as costas para o que é confortável, seguro, e que alguns chamariam de "senso comum". Bem, esse é o primeiro dia, dai em diante só fica mais difícil.

Então é preciso ter certeza que isso é algo que você realmente quer. Porque o caminho fácil sempre estará lá pronto para afastá-lo. Tudo que você tem a fazer é segui-lo.

Mas você não vai, não é? A cada passo, vem à decisão de tomar o outro.

Você está no seu caminho agora, mas isso não é sobre de quão longe você veio.

Você está em uma luta contra um adversário que não se pode ver, mas pode sentir.

Você pode senti-lo respirando bem atrás de você.

Você sabe o quem é, certo? Isso mesmo, é você.

Seus medos, suas dúvidas, suas inseguranças todos eles alinhados como um pelotão antiaéreo pronto para derrubá-lo do céu.

Mas não desanimamos.

Eles podem não ser facilmente derrotados, mas estão longe de ser invencíveis.

Lembre-se, esta é a Arena.

A batalha definitiva entre você, sua mente, seu corpo, e o diabo em seu ombro dizendo que  “é apenas um jogo”, “isto é apenas um desperdício de tempo”, “Seus oponentes são mais fortes do que você”.

Abafe a voz da incerteza com o som do seu próprio coração, queime a sua insegurança com o fogo aceso dentro de você.

Lembre-se porque você está lutando e nunca se esqueça de que o momento é uma amante cruel, ela pode destruí-lo com o menor dos erros, está sempre procurando o ponto fraco da sua armadura, aquele que você se esqueceu de preparar.

O diabo se esconde nos detalhes, mas a questão permanece .... Isso é tudo que você tem?

Tem certeza?

Quando a resposta for "sim", você já fez tudo o que pode para se preparar para a batalha. Essa é hora de seguir em frente e corajosamente enfrentar o seu inimigo.

O inimigo interior.

Agora você deve levar essa luta para o campo aberto, em território hostil.

Você é um leão em um campo de leões, todos caçando a mesma presa ilusória com uma fome desesperada, que diz: "A vitória é a única coisa que pode mantê-lo vivo".

Acredite na voz que diz: "você pode correr um pouco mais rápido.” “você pode fazer as coisas melhor”.

Para você, as leis da física são apenas uma sugestão.

Sorte é para aqueles que querem acreditar que a vitória só pode acontecer por acidente.

Suor, por outro lado, é para aqueles que sabem que é uma escolha.

Portanto, decida agora, porque o destino não espera por ninguém.

Quando chegar a sua hora e mil vozes diferentes estiverem tentando dizer: "Você não está pronto para isso!".

Invés disso, ouça a pequena voz que diz: "Você está pronto! Você está preparado! É tudo com você agora!".


Então, levante e brilhe.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Canções de Marte

A chuva cai na lona sustentada pela armação de metal do fundo caminhão, sua intensidade aumentou muito nos últimos minutos, o vento e as goteiras são um gélido lembrete que ela não pretende passar tão cedo e alguns milímetros de tecido grosso desse velho Red Ball nos separam de congelar no frio nessa noite.

Fico apreensivo, pois o barulho da chuva e o ronco do motor dificultam ouvir qualquer aproximação que possa acontecer e caso estejamos em risco só perceberemos quando for tarde demais, contudo, escuto um improvavel som vindo da parte mais externa da caçamba, a parte mais castigada pela chuva.

Lentamente o som vai tomando corpo nos tímidos sussurros de quinze soldados que estão sendo levados para o campo de batalha. O cabo que está sentado na minha frente ensaia uma bronca, mas faço sinal com a mão para que deixe os meninos.

A música que estão cantando baixinho dá um pouco de alento nessa tempestade, vejo que muitos dos que estão no coro, assim como eu, não conhecem a letra mas fazem um humhumhum para ajudar que essa pequena luzinha de conforto não se apague. As partes que consigo distinguir do rugido do motor e da chuva fala da saudade de casa e sobre uma garota que vai ficar esperando na janela até que seu amor volte.

É o meu terceiro tour nessa guerra, já levei centenas de combatentes por esse caminho que estamos e sei que um sem número de garotas receberam cartas com plaquetas de metal ao invés de seus amados no decorrer desses anos e em poucas horas esse garotos que mal começaram a criar pelos no peito vão ser jogados nesse jogo voraz que já consumiu tantos dos nossos.

O ponto final dessa viagem os fará ter saudade do campo de treinamento, fazendo até o rastejar na lama e os insultos do instrutor parecerem o paraíso perto do que enfrentarão nesse solo estrangeiro e essa canção que estão entoando talvez seja a última coisa que eles podem fazer antes de serem forçados a se tornarem homens.

Na noite escura, em um caminhão velho a vida segue cantando em direção à morte.




sábado, 10 de janeiro de 2015

A Sacola

       Noite quente de domingo, sentado diante da bancada do botequim José vê o velho proprietário servir a segunda garrafa de cerveja para a senhora loira que fala com ele em um tom alto, chato e estridente. Com notas de intimidade que os anos ou as doses de álcool lhe deram. Em resposta ele sorri e dá um pouco de trela, vez ou outra olha com o rabo de olho, a fim de ver se o outro cliente precisa de algo. Não, ainda está no primeiro copo da cerveja.
       Ontem foi o último dia de festa na cidadezinha, ela já começa a retomar seu ar pacato e modorrento, com as horas se arrastando preguiçosamente por entre as ruas de pedra, as mesmas pessoas, os mesmos cumprimentos. José torce o nariz pensativo. Melhor assim, mais sossego para sua vida, desde que essa maldita festa tinha começado era a primeira vez que conseguia sentar e tomar sua cervejinha sem aporrinhação de turista.
       Olha para a rua, vez ou outra um transeunte carregando sua mala passa diante do bar. Rostos desconhecidos. Talvez não fosse de todo ruim esse alvoroço, às vezes a novidade cai bem. É, promessa de ano novo: Esse ano havia de mudar de vida, ir pra cidade, ganhar um dinheiro bom, ou pelo menos uma boa história, conhecer uma bela mulher...
       Quem queria enganar? Ali nascera a mais de trinta anos, ali estava, ali havia de ficar, naquele lugar onde nada parecia mudar, o tempo parado nas sombras frias de um túnel...
       Nesse instante dois jovens passam diante do bar carregando bolsas e malas. Um deles para, olha rapidamente para o interior do bar e aponta discretamente para José enquanto balbucia algo, o outro entra no bar e faz um leve aceno com a cabeça para os seus ocupantes, o suor escorre de sua barba e seus óculos deixam ver olhos cansados, talvez de uma longa caminhada. Por um instante o olhar do estrangeiro cruza com o de José e este sente um arrepio sombrio. O estranho de pele morena e olhos cansados deposita uma sacola plástica fechada na lixeira, bem ao lado dos pés de José, e vai embora.
       José assiste a caminhada das duas figuras até perdê-los de vista. A entrada do homem moreno não perturbou a fala da loira, e pouca atenção teve do velho,  por outro lado José olhava fixamente para a sacola plástica depositada na lixeira. Quem entraria em um bar só para jogar aquilo ali, e sem falar com ninguém?
       De certo era só alguma garrafa plástica... Não, parecia algo disforme. Talvez uma latinha amassada, mas não havia feito som metálico quando fora ali depositado. Seria comida?
       Quando deu por si José estava arcado por sobre a lixeirinha, um estranho corcunda que voltava a ficar ereto num movimento abrupto e bebericava a cerveja com a face ruborizada, sem olhar para as outras pessoas no botequim enquanto murmurava:
       - Oiá pro cê vê... Que que eu tô fazendo?!
       Terminou sua cerveja, pediu outra. A loira saiu, um boiadeiro chegou com uns amigos, contando o causo do sujeito que caçou uma onça usando um prego como bala, todos riam e bebiam. Menos José, este olhava fixamente para o copo, depois para a sacola na lixeira, tornava a olhar o copo, então bebia.
       As primeiras gotas de chuva começaram a cair, um vento frio entrou pelas portas do boteco e o lembraram do arrepio estranho provocado pelo olhar do estranho. Pagou a conta em um acesso de pressa justificado pela tempestade ajeitou e tornou a ajeitar suas coisas no embornal até que numa tentativa frustrada de ser discreto passou a mão na sacola de lixo e saiu em carreira rua a fora. Direto pra casa, entrou, sentou no sofá e desfez lentamente o laço que fechava o saco.
       Dentro, alguns cogumelos, que deveriam ser brancos, mas já estavam levemente enegrecidos pelo tempo. Por qual motivo alguém carregaria uma sacola de cogumelos ali? Certamente se confundiram, acharam que era algo útil. Já tinha ouvido falar de pessoas que comiam essas coisas, mas sempre soube que era um veneno.
       Ou será que não? Teria o jovem de pele morena e expressão dura dado a ele a chance de ver algo novo, sentir uma experiência nova? Um tio-avô, muito tempo atrás lhe contara algo sobre um amigo que comera um desses, e que disse ter visto coisas maravilhosas.
       Lorotas.
       Saiu de casa para pendurar a sacola junto com o restante do lixo, abriu a porta e sentiu o vento borrifando gotas de chuva no seu rosto, sentou-se no degrau que separava a calçada do portal olhando para o conteúdo de suas mãos e deixando o ar úmido tocar seu rosto.
        Qual criança olhou para o céu contemplando a chuva que cessava, dando espaço para as primeiras estrelas. Lembrou que não sabia o nome de todas, uma ou outra só, que o avô lhe ensinara, as três marias, o cruzeiro... Deus, havia tantas! Alguém saberia o nome de todas? Ele poderia dar o nome a alguma? Elas sempre estavam lá, mas se mudassem, veríamos a diferença?
       Fechou os olhos e se lembrou de quando ainda moço ajudava o pai e os irmãos na roça de feijão, dos banhos de ribeirão e das noites caçando pacas. Das inúmeras cavalgadas, das diversas enchentes, de um ou outro amor não correspondido, do cheiro doce das flores no enterro da mãe, e a água em seu rosto não se sabia se era da chuva ou alguma lágrima ladina que saltara de seus olhos.
       Notou então José que o tempo não havia parado, levantou-se e jogou fora a sacola. Caminhou pela rua, era tempo de ver um novo dia nascer.