quarta-feira, 18 de maio de 2016

Finalmente

O tecido se move gracioso em um dança provocativa vermelha e dourada, assim como aprendeu quando ainda era muito pequeno. Seu corpo está sublimemente ereto, tal qual um bailarino, mas diferente deste, ele está com um fina espada e uma rosa em suas mãos.

A arena inteira está em silêncio aguardando o próximo movimento, que assim como todos, pode ser o último. O silêncio é quebrado quando após a besta passar furiosa, toda a torcida rompe em um grandioso "Olé!".

O couro do torso do touro toca suavemente a roupa brilhante de seu nêmeses, que apesar da falha imperceptível para a plateia, sabe que cometeu um erro e mesmo decepcionado continua com seu olhar pétreo para o adversário, fazendo pequenos movimentos nessa dança cruel.

O toureiro está na arena e não está, os antigos chamam isso de espirito da arena. Quem comanda seus passos não é a sua vontade própria, mas sim a vontade de todos os toureiros que vieram antes dele e antes dos toureiros, do próprio Deus que ensinou essa arte aos homens.

A plateia veio pelo banho de sangue, mas ele está ali em respeito as antigas tradições e até mesmo em respeito ao próprio touro. Cada trote desembestado da criatura é correspondido com um movimento técnico. A fúria e a razão dançando enquanto são aplaudidas por uma legião de ignorantes.

Tudo é belo, tudo é cruel. O toureiro cansa o touro fazendo o mínimo esforço. A besta tenta desesperadamente matar o toureiro, mas mira no lugar errado. Assim ambos continuam, assim ambos mantem este ritual que só termina com a morte de um dos dançarinos.

Mas neste dia foi diferente, o dançarino não se manteve no espírito da arena, deixou seu coração ser tomado pela mesma fúria que havia no coração do touro. Lembrou-se do dia anterior, quando sua amada resolveu partir e com a fúria, veio o medo e com o medo, a cegueira.

Uma piscada mais longa. Somente estes poucos segundos de trevas absolutas, foram necessários para dar fim a dança. O longo chifre pontiagudo da criatura perfurou seu peito, no exato local onde estava seu já dolorido coração e agora toureiro e touro são apenas um ser horrendo e bizarro circulando pela arena.

A rosa vai o chão e a torcida horrorizada com desfecho do macabro espetáculo grita desesperadamente, retirando crianças agora traumatizadas e se pisoteando-se na busca por alguma saída daquele teatro de horrores. Todos compartilham agora o medo, a fúria, o desespero do touro. O ritual tem o seu pior desfecho.

A consciência do toureiro voa por todos os lugares que já esteve, rememorando alegrias e tristezas, momentos felizes e traumas secretos. Tudo enquanto trota em agonia junto a criatura a qual deveria ter sido o assassino.

Sabendo que tudo está perdido e que suas esperanças de glória e amor terminaram naquela sangrenta arena, utiliza suas últimas forças para, com sua espada, causar um golpe fatal na besta assassina. O ritual foi profanado. Ele sabe que deveria dar ao touro o direito de viver, assim como o teria caso tivesse sido o vencedor da disputa.

Sua mão encontra o couro ainda quente da besta e com um toque quase carinhoso, pede desculpa.

Agora ambos podem finalmente descansar.



domingo, 3 de janeiro de 2016

5 Coisas que Aprendi em 2015

Se existem duas coisas que a internet adora nessa época de virada de ano são: retrospectivas e listas. Então, mesmo soando um pouco clichê para os leitores mais exigentes, aqui estão cinco coisas que aprendi em 2015.

1. Você vai perder coisas pelo caminho.

A vida gosta de testar seus tripulantes com desafios para mensurar a sua vontade, e um dos piores testes que ela pode fazer é tirar coisas que você tinha dado como certas. Quem me conhece sabe que não sou o cara mais aberto do mundo e por fingir um nível de sabedoria maior do que tenho, propago a máxima da "impermanência do mundo", mas mesmo já teorizando sobre isso, sentir na pele é bem mais complicado e doloroso. Por incrível que pareça, o aprendizado que essas perdas vão te dar, te levarão a descobrir uma simples e subvalorizada coisa: Você vai sobreviver. Pode até parecer impossível na hora, mas você vai sobreviver.

2. Você vai encontrar coisas pelo caminho.

Nesses tortuosos caminhos, algumas vezes, coisas que irão reacender a chama da inspiração no seu coração e isso vai te fazer ver - ou voltar a ver - cor nessa louca viagem que passamos na bola azul. Ela pode vir de muitas formas, podem ser pessoas, oportunidades, ideais, livros, o que for, aceite, nunca devemos desperdiçar essa fagulha quando ela aparece. No entanto, é bom - para não dizer fundamental - saber diferenciar o que realmente acende essa fagulha, para não desperdiçar energia e tempo com "não-fagulhas".

3. Sempre seremos perfeitos estranhos.

Não importa o quanto conheçamos alguém, amores, amigos, parentes, nunca conheceremos de verdade essa pessoa. Dá sua mãe ao padeiro da esquina, você só vai se saber uma fagulha mínima do que elas pensam e sentem no fundo de suas almas, podendo haver pântanos pútridos onde pensamos existir belos jardins e vice versa. Essa impossibilidade de concretização da meta não tira seu mérito e mesmo que por apenas uma noite, devemos tentar conhecer os outros.


4. É Ok pensar em desistir às vezes. 

Campbell com a sua Jornada do Herói já cantava a pedra, dizendo que todos os heróis vão, no começo de sua jornada, negar o caminho que foi escolhido no fundo de seus corações. Não pretendo me considerar um herói, mas como mitos são generalizações dos indivíduos, posso pegar emprestado essas etapas e tentar adequar a minha humilde existência. Pensei em largar meu caminho esse ano e percebi que a simples contemplação do que seria a vida sem os meus objetivos me fez retornar a senda que apetece minha alma. É importante lembrar que mesmo que deixemos de fazer o que queremos de verdade por um tempo, temos que sempre voltar ao nosso objetivo principal.

5. Atravesse a ponte.


A origem dessa lição é meio boboca. Nesse ano fiz minha primeira viagem para fora do Brasil, mesmo que apenas por algumas horas, estive fora do território nacional e tudo que tive fazer foi atravessar uma ponte, como tantas outras que já atravessei aqui no Brasil, mas diferentes destas, aquela me levava para o mais longe que já estive de casa. Podem até os quilômetros não serem tantos, mas o contexto fazia com que fossem. E o que tive de fazer foi atravessar uma ponte.
Essa sensação é meio estranha de descrever, pois ainda que meu corpo estivesse tenso e meu olhar atento, o meu coração batia com uma felicidade que há tempos  não batia.

Se puder aprender apenas uma lição de 2015, mesmo que seja misterioso e desconhecido, atravesse a ponte.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

O primeiro sorriso


Foi de cara. De primeira. Espontâneo. Instantâneo. Sem planejamento. Simples. Profundo. Significou muito. Abrigava uma vida. Acomodava um século em um segundo. O tempo parou.

Em um breve momento, houve uma transposição. Qualquer aflição, qualquer dúvida, qualquer briga com o passado, qualquer vício ou descrença se desfizeram. A certeza da felicidade estava ali, em um lapso. Sabe aquele lance da vida ficar mais colorida? Era inspiração para qualquer artista.

Transporte. Em um segundo é como sair da realidade cinzenta, rotineira, do pensamento preguiçoso que nem se esforça para voar. E parar em uma casa no campo, harmônica, verde, tranquila. A paz sintetizada em um momento. A brisa fresca toca o rosto no mais fechado dos ambientes. Te faz acreditar. Nem dá pra saber em quê, mas acreditar. Acreditar que o mesmo Deus que fez os céus, as estrelas e os rios, fez aquele sorriso.

Repetição. Saber que é possível atingir aquele êxtase com pouco. Se esforçando muito ou pouco, basta saber que com amor e dedicação as coisas acontecem. Uma piada boba, uma declaração simples, um discurso prolongado, um olhar. Um sorriso que será certamente correspondido com outro. Ela pode nem saber, mas seu sorriso é um banho para a alma. É capaz de transcender a matéria, o metafísico, o espiritual, atingindo patamares desconhecidos pela interpretação do cérebro. É aquele velho protocolo do sentimento: o que o torna real é senti-lo.

Descrição. E o que se sente se descreve? Nessa constante batalha para traduzir em comunicação o que temos dentro de nós e externar, compartilhar, ser ouvido, entendido e/ou compreendido, seja em palavras, imagens ou qualquer coisa interpretada por outrem, só concluo que... o vocabulário da língua portuguesa ainda não me ensinou um termo que descreva-o. Não é apenas lindo, ou perfeito. Talvez catártico ou sinestésico. Certamente mágico.

Causa. Causou perda. Perda do medo. Do tédio. Da solidão. Da dúvida. Da importância de muitas coisas, inclusive do que já não devia importar mais.

Foi o primeiro. O primeiro de muitos que viriam. Mas aquele primeiro sorriso foi fulminante. Automático. Um tiro no coração, uma leveza na alma, uma mudança de perspectiva, uma contraída nas pupilas, uma certeza do que viria: plenitude. O que fica é a gratidão. Essa experiência dá propósito, muda a perspectiva, dá vontade. Dá um puta tesão de viver. E sabe qual é o melhor dessa história? Quando você percebe que o primeiro nada mais é  que o próximo.



Mas aquele primeiro sorriso...