quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Lua Nova -Parte 2/2

O soldado entra na sala e confere as algemas do homem. Após isso informa que ele veio sem qualquer documentação e que ainda não conseguiram descobrir sua identidade pelo banco de dados, com o fim deste momento protocolar Saldanha se mostra extremamente deslocado no ambiente, até que Ricardo lhe diz que poderia aguardar do lado de fora.

O assassino se manteve olhando para Ricardo desde sua entrada, parando apenas para lançar um sorriso para o soldado enquanto esse conferia suas algemas. Agora estavam apenas os dois na sala, mas Ricardo estava surpreendentemente calmo, analisando cada detalhe daquela expressão imutável, até que depositou sua valise sobre a mesa e anunciou:

- Bem, meu nome é Ricardo, vou fazer um pequeno teste com você amigo. Se importa de me dizer seu nome?

- Ainda não tenho um.

Ricardo olhou para o individuo, ele realmente parecia muito à vontade ali, e por mais descabida que tenha sido a resposta, seu tom foi de uma total naturalidade.

- Como assim não tem um nome?

- Ora meu rapaz? Não acompanha os jornais? Ou até mesmo filmes, sabe, cultura geral? É a imprensa quem nomeia pessoas como eu. Estou aguardando meu batizado de sangue. Mas pelo visto não consegui sangue o suficiente para tal batismo, nada que eu não resolva em breve.

Tal comentário foi seguido de um sorriso descontraído, quase uma gargalhada.

- Bem, não querendo te fazer mudar de ideia amigo, mas você está preso agora. Não sei se poderá fazer isso.

Ele apenas riu.

- Bem, vou começar em breve, devo informar-lhe que este procedimento será gravado.

- Nada me deixaria mais satisfeito. Esfregando as mãos enquanto falava emendou. - Então, o que você quer saber primeiro?

- Primeiro gostaria de saber seu nome, o que está em seus documentos.

- Estou sem meus documentos agora Ricardo. Como já lhe informou nosso intrépido guarda que está do outro lado da porta.

- E por isso deixa de ter um nome?

- Temporariamente. Guardei meus documentos e outras coisas de valor em um lugar seguro, onde eu possa reavê-los quando acabar meu trabalho.

- Você se entregou, seu trabalho não terminou?

No momento seguinte Ricardo desejou ser capaz de engolir de volta suas palavras antes que elas chegassem aos ouvidos do criminoso, sem dúvidas esse não era o caminho para conseguir algo de concreto. Afinal bater de frente através de perguntas diretas dessa natureza seriam parte do jogo mental dele, ou simplesmente fariam com que ele se calasse. Mas já estava feito, e Ricardo assistiu ao seu interlocutor mudar de feição e tomar um ar de extrema seriedade.

- Eu pareço com um homem que terminou seu trabalho Ricardo?

As coisas não corriam para o caminho devido, afrontá-lo não era adequado, melhor passar direto para o teste. Abrindo sua valise Ricardo começa a retirar várias lâminas e um bloco de anotações, desejando ardentemente que estivesse a quilômetros dali deitado no colo de sua noiva enquanto ela lhe fazia um cafuné.

- Certo, vou apenas realizar uns testes aqui amigo. Irei lhe mostrar algumas lâminas com desenhos, e você me diz a primeira coisa que lhe vier a cabeça. Estamos entendidos?

- Unn... Parece legítimo para mim. Outra risada. Nesse momento ele olha para o lado de forma pensativa, seus olhos pairam lentamente sobre as divisões da parede cinza e caminham até a mão esquerda do entrevistador, onde ele se fixa demoradamente.

- Ok, vamos dar inicio.

- Uma linda borboleta.

- Mancha de mostarda.

- Lindas flores.

Cada resposta era seguida de um riso, que aumentava gradativamente. Ricardo estava impaciente com aquilo, em uma situação normal não interromperia, mas aquela não era uma situação normal.

- Certo... cara, quero que me diga a verdade. O que essas figuras te lembram? Você tem algum problema em colaborar aqui?

- Eu? Nenhum problema! Quero saber se você não tem problemas com o que pode ouvir aqui. Você tem?

Sem tirar os olhos do criminoso sorridente Ricardo respondeu que estava preparado para qualquer coisa que ele viesse a dizer.

- Apenas me diga o que vem à mente quando vê essas imagens para darmos andamento aqui.

– Sabe Ricardo, muitas das pessoas tem prazer com coisas muito específicas, é o seu caso?

- Por favor, tente se concentrar nas imagens.

- Claro, claro. Só estou dizendo que na minha opinião as pessoas são movidas pelos seus desejos. E em mim, esses desejos são quase sempre transferíveis para uma natureza sensorial.

- Por exemplo, a filha do delegado... Orelhas arrancadas ... era uma bela garota, para os padrões da nossa sociedade, talvez estupra-la fosse prazeroso, mas para mim, não seria tão prazeroso como foi cortar-lhe fora as orelhas, ouvindo o som de cada fibra muscular se desprendendo enquanto eu as puxava e depois sentindo nas minhas mãos a maciez de suas cartilagens... Pele queimada.... ou quando lancei o padeiro dentro do forno da padaria. Era preciso muita atenção para ouvir por detrás dos gritos do infeliz o som de sua pele pululando em bolhas, por outro lado o odor ainda permanecia perceptível a dois quarteirões de distância. Provavelmente por que retirei-o ainda vivo. E você sabe por que “amigo”? Por causa do maior prazer que você pode extrair de um moribundo. Os olhos do homem cintilavam e um fio de saliva ameaçava escorrer de sua boca. Você já assistiu alguém morrer? No momento da morte, o brilho dos seus olhos se desfalece em uma coloração opaca, única, como se a fosse iluminado por algo de dentro para fora, fazendo com que a parte que enxergamos ficasse negra e sem vida. Como a lua, na sua fase nova. Nada no mundo me é mais prazeroso do que assistir a esse momento. No inicio achava que só seria possível com olhos negros mas fiz alguns experimentos, e hoje sei que a cor dos olhos afeta a beleza do momento, mas não o suficiente para fazê-lo perder o prazer. A propósito essa última são Olhos sobrepostos. Vários deles, sabe?

- Ricardo? Você me parece muito silencioso, achei que fossemos conversar mais... Agora o homem gargalhava quase incontrolavelmente.

Ricardo guardava suas lâminas e seu bloco de anotações, em branco. Ele queria se concentrar no seu trabalho ali. Ouvir a gravação depois e tirar conclusões dela, agora ele estava perturbado, sentia que ia vomitar, então ele apenas se levantou e se dirigiu para a porta.

- Adeus, estranho.

- Até breve Ricardo. Até breve, ou acha que vou ficar preso por muito tempo?

- Acho que vai ficar preso para o resto da sua vida.

- Acho que vou ficar preso por tão pouco tempo que nem vão acreditar que fui realmente pego, o que não fui. Mas não se preocupe Ricardo, não vou atrás de você...

Com as mãos trêmulas Ricardo abriu a porta e antes de sair olhou para trás uma última vez, a tempo de ver o assassino do outro lado da mesa sorrindo da mesma forma em que estava quando entrou, e também de ouvi-lo dizer.

-... Não de você.


quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Lua nova - Parte 1/2

Noite fria e escura, típica da fase nova da lua. Ricardo olha para a porta do prédio cinza e mal acabado da DPO de Santo Amaro. Definitivamente ele não queria estar ali.

Após respirar fundo aperta com força a alça da valise preta com sua mão direita enquanto retira o suor da testa com as costas da outra. Ele caminha para a entrada, no saguão principal, um ambiente relativamente pequeno de trinta metros quadrados, com várias cadeiras e uma escrivaninha.

- Senhor Ricardo, o delegado está te esperando na sala dele. Avisou respeitosamente o jovem secretário de trás da mesa.

Com um aceno de cabeça e um sorriso Ricardo passa por ele e entra em um corredor. A gola da camisa social parecia apertar seu pescoço. Mais alguns passos até o escritório do delegado.

Da porta ele vê um homem baixo e gordo, vestindo um terno marrom e uma camisa social listrada sem os botões da barriga. Olheiras profundas denunciavam tempos difíceis e muitas noites em claro. Bem, Ricardo sabia que todos na região tinham um motivo para não dormir bem. Ele estava ali para ver esse motivo. Entretanto a garrafa de uísque pela metade lhe dizia que algo estava errado.

- Então, Doutor Ângelo, você conseguiu! Capturou o assassino. Sabe, fico muito feliz com isso. Mas, o senhor não esclareceu as coisas pelo telefone... O homem que vocês tem aqui é apenas um suspeito? Ou pegaram-no em flagrante? Houve outro assassinato?

O homem na escrivaninha sequer olhou para cima. Apenas virou outro copo do líquido e manteve os olhos na parede a sua frente.

- Ele se entregou Ricardo. O desgraçado veio aqui, exatamente onde você está, sorriu e disse: “Eu tenho feito coisas muito, muito más, senhor policial.” Então deu uma gargalhada.

Ricardo continuava olhando para o delegado, fazendo o possível para não externar seu desconforto. Então, o assassino em série simplesmente veio e se entregou.

Bem, não é de todo sem sentido, na sua mente ele deve precisar de uma plateia interativa, com a qual ele possa jogar e afetar, como o delegado aqui.

- Sou um inútil Ricardo?

- Perdão senhor?

- Ele pensa que sou um inútil. Nunca pegaria ele. Eu já imaginava que ele fosse confiante, mas, não sei, isso é demais, sabe? Aí ele veio, ele veio e riu! Desgraçado!!! Vai apodrecer na cadeia!!

A essas alturas o delegado já dava murros na mesa. O suor lhe escorria pelo rosto transfigurado pelo ódio. Um homem acabado e humilhado, bufando de raiva.

- Bem... se é esse o caso Ângelo. Por que me chamou aqui?

- Por que quero ferrar esse infeliz. A procuradoria e a defensoria pública já estão tomando suas providências, mas veja, não temos provas, ele pode ser só um idiota fingindo ser o que não é, pode ser uma distração, pode ser a merda de outro plano. Preciso de um parecer profissional, quero saber se esse é o nosso cara, se ele é perigoso. Preciso saber tudo antes que a PF apareça aqui amanhã com duzentos peritos à tira colo e tirem ele de mim! Eu vou acabar com a vida desse infeliz, assim como ele acabou com a minha!

- Sabe que não tenho muita experiência com isso, certo?

- Você quer o que Ricardo? Aonde vou arrumar um psicólogo criminal com experiência “nisso”? Ou um psiquiatra de confiança em plena madrugada? Você é novo, mas vai servir. Apenas vá lá e faça algo. Saldanha! Ei, leve o doutor aqui até a sala do maníaco.

O soldado Saldanha era um homem com seus 35 anos. Magro, não muito alto e visivelmente transtornado. Mas Ricardo não o julgava por isso, nem pelo modo como suas mãos tremiam ao procurar as chaves da sala de interrogatório. Esse policial provavelmente estava acostumado com acidentes de carro, ladrões, drogados, traficantes. Com certeza já havia participado da prisão de um ou outro assassino passional. Mas nunca algo como este homem. A polícia local contabilizava 15 mortes em um mês. Muito foi abafado mas a grande imprensa já fervilhava. Ricardo sabia que já havia agentes da Polícia Federal na cidade investigando. Sabia também que eles só não estavam ali naquele momento por que Ângelo devia ter negligenciado a ação de dar esse informe.

Na frente da sala há três policiais que abrem caminho, provavelmente ouviram dali os urros do delegado.

Ricardo para diante da porta enquanto Saldanha se atrapalha com as chaves. Ele sente como se fosse partir a alça da valise com a mão. A porta se abre, e sentado diante de uma mesa se encontra um homem alto, de boa aparência, cabelos escuros e curtos, trajando uma roupa social estranhamente bem alinhada para a situação. O homem encara o psicólogo e sorri.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Queda que as mulheres têm pelos homens tolos - Machado de Asis

" Enfim, o homem de espírito, em vista do que é, inspira às mulheres uma secreta repulsa. Elas se admiram com o ver tímido, acanham-se com o ver delicado, humilham-se com o vê-lo distinto.

Por muito que ele faça para descer até elas, nunca consegue fazê-las perder o acanhamento; choca-as, incomoda-as, e esse acanhamento, de que ele é causa, torna frias as conversações mais indiferentes, afasta a familiaridade e assusta a inclinação prestes a nascer.

Mas o tolo não atrapalha, nem ofusca as mulheres. Desde a primeira entrevista, ele anima e fraterniza-se com elas. Eleva-se sem acanhamento nas conversas mais insulsas, palra e requebra-se como elas. Compreende-as e elas o compreendem. Longe de se sentirem deslocadas na sua companhia, elas a procuram, porque brilham nela. Podem diante dele absorver todos os assuntos e conversar sobre tudo, inocentemente, sem consequência. Na persuasão de que ele não pensa melhor, nem contrário a elas, auxiliam o triste, quando a ideia lhe falta, suprem-lhe a indigência. Como se fazem valer por ele, é justo que lhe paguem, e por isso consentem em ouvi-lo e tudo. Entregam-lhe assim os seus ouvidos, que é o caminho do seu coração, e um belo dia admiram-se de ter encontrado no amigo complacente um senhor imperioso!(Miscelânea, O. C.; Vol. III, p. 971)"

Garotas... essas mulheres... Não sejam essas mulheres.
Happy Valentine's Day.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012


“Tuas palavras fazem meu coração voltar a vida tal qual a fênix das histórias, antes mesmo de que minha jornada comece, já sou grato a ti. Por piedade me mostre logo o caminho que me levará até a senhora do meu destino.”

Orpheu

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Pela avenida, se esquecendo da vida

São 2 horas da tarde. Caminho já no fim da Presidente Vargas, tenho que passar nas Barcas para recarregar meu bilhete único antes de pegar o ônibus para Botafogo. Por sorte tive de buscar esse documento no Colégio Pedro II e me lembrei que ele estava quase zerado, provavelmente só havia o suficiente para mais uma passagem, e amanhã tenho uma entrevista de estágio em Niterói, sem o bilhete estaria enrolado.

Procuro inutilmente uma sombra para me abrigar desse sol de fritar calango, típico do Rio de Janeiro. Decido que é mais vantajoso apertar o passo para voltar logo pra casa.

Alguns metros depois vejo ao longe uma moça se aproximando na mesma calçada que eu. Dou inicio a uma sequência de pensamentos idiotas. Será que ela é bonita como está parecendo de longe? Parece que sim. Unn... tem cabelos castanhos. Pode ser a Débora Secco. Será? Ou talvez outra atriz? Podia ser... Uma atriz podia se apaixonar por mim, ia ser legal ter um romance com uma atriz! Se bem que seria muito conturbado... Não gosto de gente fuxicando minha vida. Olhando mais de perto parece a Carla lá da faculdade. Nossa, a Carla é muito gata! Quando encontrar aquela garota de novo vou fazer alguma coisa pra me aproximar dela, talvez e...

- Oi Marcos!

- Carla?!? Err... Tudo, tudo.
(Calma Marcos... calma. Postura, estufa o peito e sorria) Caramba, que surpresa te encontrar aqui no Rio, o que faz por aqui?

- Eu moro aqui Marcos, você esqueceu?

(
A voz Marcos, melhora a voz) - Ahh... Mil perdões minha cara, é que passa muita coisa nessa mente aqui! (Unn... talvez eu tenha exagerado na encenação)

Ela começa a rir divertidamente. - Ahan, sei Marcos. Espero que esse semestre cálculo esteja entre essas coisas, você já está bem enrolado com essa matéria. Hehehe, você é uma graça garoto!

Ela diz isso colocando sua mão sobre meu ombro e sorrindo ternamente, nos despedimos com um aceno e ela dizendo que nos vemos em breve na faculdade. Ainda a vejo se distanciando rebolativamente pela calçada. Nossa como ela é gostosa! Acho que fiz uma boa impressão, sim, fiz sim.

Sigo meu caminho mantendo a pose altiva de quando conversava com ela. Olho para o lado e vejo meu reflexo no vidro de um prédio. Estou estranhamente com a espinha arcada para trás, com um ombro mais alto que o outro, escorrendo suor pelo rosto, o cabelo parece ter sido propositalmente emaranhado, ainda ostento duas pizzas na camisa social com apenas um botão preso deixando à mostra uma camisa estampada de gosto duvidoso.

- É... talvez não uma impressão tão boa assim. Me endireito o melhor que posso, vejo um ônibus que vai no sentido Botafogo, corro até o ponto e sigo o fluxo de passageiros até conseguir um lugar para sentar.

Droga, não lembro o que vim fazer por aqui. Pelo menos encontrei com a Carla.
Bem, ela parou pra falar comigo, quem sabe ela não é afim de mim? Pode ser...

Olho contemplativamente para a paisagem através da janela, no céu vejo aves maritmas que sobrevoam a Baía de Guanabara passando agora por cima de uma das Barcas...

Unn... Merda!



domingo, 5 de fevereiro de 2012

Metamorphosys


"Se eu passar mais uma noite acordado - ouvindo canções de amor - vou me transformar em poesia"

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Histórias do Deserto - O Guerreiro e a Rainha


 O sol do deserto é inclemente, a areia ardente turva a visão do horizonte que divide o azul profundo do firmamento e a grande imensidão amarela do Saara.


O véu azul escuro como a noite que está cobrindo o seu rosto é carregado como uma mistura de orgulho e pesar, pois é o que usa para demonstrar sua origem e isso causa admiração e horror por onde passa, já que todos dizem conhecer o Destino de um homem dessa linhagem, pois seu povo habita o imaginário de todos os moradores do deserto.

Os mais esperançosos dizem que os Tuaregues são os guerreiros livres que vagueiam por todo o Saara e por isso conhecem os segredos das misteriosas tempestades de areia que levam para outros mundos, mundos estes que tem criaturas fantásticas, como pequenos homenzinhos voadores de mil olhos e gigantescos vermes subterrâneos que usam areia movediça como armadilha para conseguir alimento.

Já os anciões ranzinzas afirmam que eles são uma nação abandonada pelos Deuses, que por não terem sabido aproveitar as dádivas oferecidas por eles foram condenados a vagar pelo deserto escondendo o rosto dos maus espíritos, que ainda hoje tentam atormentá-los, enquanto buscam o caminho de volta para a sua terra natal.

Mas essas histórias não interessam agora, apenas o fato dele saber que trazia consigo as tradições milenares de seu povo e que deveria mantê-las, gostasse disso ou não, que importa.

Fazia dias que não encontrava um oásis para saciar sua sede e de sua montaria, um camelo, que junto com ele, já percorreu tantas vezes essas terras que a sede e a Morte já se tornaram companheiras de viagem.

Os Tuaregues, desde pequeno aprendem a cultivar uma relação bem peculiar com a Morte, primeiro com as histórias contadas pelos membros mais velhos das caravanas e depois com o seu ritual de iniciação, que os faz conhecer pessoalmente a Senhora do Deserto, mas essa também é outra história meu bom príncipe.

Quando o guerreiro finalmente encontrou um olho d’agua no deserto, já era entardecer e por entre as pedras avermelhadas que o separava da fonte de água viu uma linda mulher que guardava o lugar.

Por um momento hesitou, já a tinha visto em suas visões, mas nunca pensou que ela fosse real e muito menos que um dia a encontraria, pois ela é a rainha de reinos distantes e ninguém viria de tão longe sem um forte propósito.

Desceu de seu camelo em um rápido movimento e enquanto caminhava em direção a ela, retirava cuidadosamente seu véu, pois já não havia mais motivos para usá-lo.

Ao se aproximar percebeu que pequenas lágrimas caiam dos olhos dela, pequenas gotículas de diamante que deixavam um triste rastro em sua bela face.

Aquilo lhe partiu o coração e com um gesto suave lhe acariciou o rosto para que soubesse que nenhuma lágrima mais precisaria ser derramada, pois ele estava ali. Neste momento uma brisa doce afagou os corpos de ambos e um sentimento irrefreável tomou-lhes as almas, resultando em um caloroso beijo.

Não havia mais guerreiro ou rainha, apenas a mágica existia naquele lugar.

Mas de subido, o gozo fez-se silêncio e o guerreiro se viu sozinho no olho d’agua.

Há quem diga que tudo aquilo não passou de uma vil artimanha da Senhora do Deserto, que lhe deu o que mais desejava só para poder retirar e observar o sofrimento do pobre homem, mas sei que isso não é verdade.

A Morte nunca faria algo assim com um Tuaregue. Acredito que aquele lugar na verdade pertencia ao Senhor do Tempo, que deu uma visão ao homem e lhe mostrou qual deveria ser o propósito de sua jornada.

Só que tudo isso não passa de especulações de um velho contador de histórias... Falando nos Senhor do Tempo, ele andou bem depressa conosco e já é hora de dormir querido amo. O seu pai não gostaria que você ficasse acordado até tão tarde e não serei eu que vou deixa-lo irritado.

Por favor, hakawati, conte só mais uma história – disse o jovem príncipe com olhar sonolento.
Tá bom, só mais uma.

Em uma terra muito distante, existiam grandes construções nas quais muitas pessoas viviam em silêncio. Em um dos lugares de lá um jovem escrevia coisas em um livro de luz...

Ao perceber que o pequeno havia adormecido o já idoso senhor o cobriu com um fino lençol de algodão e partiu para os jardins do palácio para sentir o doce perfume dos jasmins e fumar pacientemente o seu narguilé enquanto observava as infinitas estrelas no céu, que pareciam joias bordadas em um pano negro.

Essa visão o fez lembrar-se do seu tempo no deserto e um sorriso esquecido, furtivamente, lhe surgiu no rosto e trazendo mais algumas histórias.