terça-feira, 27 de agosto de 2019

O viajante


Só hoje, atravessei o vale das incertezas, mergulhei no lago dos sonhos, pedalei na estrada da nostalgia e me aventurei na taverna da esperança. Cada qual em sua particularidade infinita, conferi a confusão encerrada do ser frente ao espelho das formas abstratas. Inegável apelo ao Olimpo, clarividência, clemência, piedade. Outrora épica, a narrativa simples do camponês e sua donzela, felicidade como se brinda a cartilha - morada, grata, fácil e farta – tornara-se odisseia.

Perde tortuosidade na fuga pelo simples, o encontro humano nas infinitudes do acaso. Va lá o infinito particular, implacável e cessado não-tedioso dando espaço às experiências inerentes das primeiras-vezes. Na contrapartida sensivelmente poética do apaixonar-se por alguém como você, há a dureza do fato. A própria partida da contrapartida. Enxergar o vibrante arco-íris da existência em cima da montanha de caca do ser. O balanço humano, sem perfeições, sinestésico, adaptável e mutável.

Na rua das saudades, já me perdi umas quarenta e oito vezes. Possibilidades inócuas em algumas saídas, probabilidades reescritas em outras. Sobrevivência. Na sabedoria contemporânea no dirty talk de uma incipiente celebridade, a astúcia da experiência humana: saudade do que ainda nem foi vivido.

O espaço inexplorado, datado como mais um. Dia 27, mais um. Onde o viajante se perde e se encontra. Sabendo seu valor, sua cor e seu caos. Não sabendo nada, ao mesmo tempo. Sente falta do devido abraço, do devido apreço. Se deleita ao sorriso, ao rir da vida com a capacidade da criança que sabe que está absolutamente tudo bem. O viajante sabe o valor de casa pois já se perdera. O sedentário sabe o valor de casa pois já se encontrara.

Flexível rigidez do vento que sopra às pedras, balança árvores e não derruba frutos. Agressiva, ciclicamente busca natureza. A flecha só vai mais ao longe aumentando a tensão. Sente, tensão, o desejo. De querer, de contar, de somar e caminhar. Só se conhece aquele que se perde, sabe o viajante; vence aquele que não perde. Quando dói, o foco é na dor até que se cure; sapiência natural de desenvolvimento ancestral. Vibra gratidão, clama retomada.

E segue a caminhada.

terça-feira, 30 de julho de 2019

Intrépida

Roga pois a experiência. Carne posta à mesa, banquete viril. Nem os vegetais se adequariam, secura mórbida em pratos esparsos.
Vide pois o reino dos homens. Às mulheres, os louros e pérolas. Uvas que decaem sobre engalfinhadas garras das sedentas vontades. Jovialidade, reinserção posta ao amargo contragosto

- Vá, apanha-me morangos e os coloque à serventia daqueles vassalos! - exclamou o príncipe.
- Ordens a quem se dedica, vossa alteza - Intrépida cerra-lhe os punhos
- Àqueles que lhes acometer - balbucia o príncipe - Não sois tu que a todos rogam clamor?
- Sou apenas a que rege, à revelia - responde a mulher, em tom neutro.
- E não buscas nada, fidalga? - com entonação provocativa o príncipe a encara - vives à margem da revelia?
- A revelia é a calma, aglutino conhecimentos como amantes, mangas como figos e tratos como escolhas - encerrou.
- Não sejas por isso - aclamou o príncipe - Ergam as taças! - no gesto clássico de quem brinda - À mulher de vestes leves!

Pós devida repetição, intrepidamente fitou-lhe os olhos, em agradecimento não-servil. Olhos cúmplices, bocas meladas.
Não para menos, tamanha gordura no ambiente. Findou-se o banquete à norma do palácio, cerrou-se a realeza seus aposentos. A mulher se iria então ao encontro de seus amantes em sonhos. Compreendendo-se incompreendida, atirou-se de vestes e tudo ao que seria a masmorra para uns. Lugar comum para ela. Lá, na masmorra se encontra e dela seus desejos se colocam à prova de tudo, pouco se importando com o julgo, mexendo-se conforme a música; os sons da noite.

Em seu aposento, fita-lhe o príncipe, estático. A bradar e retomar grandes gestos, não garantia a atenção de sua querida. Lhe recolocava à cabeça, não obstante pois todas as amantes do reino, a que lhe acometeria os elementos era indomável. Aceitar a beleza do que é, compartir os augúrios da monarquia com a infusão da vida. Intrépida. Lhe restava o sabor do travesseiro e clarear do dia. Sábio homem, esperava sem esperar e vivia a morrer.

Sábia mulher, que fez de seu ventre o universo e de seu coração morada. Regia porque podia. Fez do tabelião seu escravo e do escravo seu amante. Romarias mal-vindas lhe passavam enquanto tecia seu leque sob a cruz. Havia de tocar-lhe a espada. Acerta bainha, mexe a cadeira. Acena a quem lhe acena. Observa a quem lhe observa. Queima a quem lhe umedece. Agracia a quem dedica. 

Justa.

Amanhece no reino. O príncipe acredita ser o primeiro a cumprimentar o sol. Olha abaixo, no estábulo, ela entrelaça cordas em trouxas e prepara a sela de longa trilha. "Viajará", concluiu o monarca. Brotava-lhe à memória suas andanças e empreitadas. A cabeça de alguns cavaleiros lhe remontavam à memória, aventura que lhe cerne. Seu reino continua, amanhecendo mais uma vez, sob sua batuta, reconhecendo-se não como o mais honrado, mas o que seus entes precisam. Cresce com a cidade e à ela dedica sua existência temporária. Segue em direção à amada:

- Tens tudo que precisa? - indaga-lhe calmamente o homem.
- Sim.
- Faças então, bom proveito. Apenas não desfaleça. - conclui o príncipe.
- Nem tu. Cuide de meu jardim - sorriu-lhe brevemente, intrépida.

E ambos cumprimentariam o sol nascente.

terça-feira, 8 de janeiro de 2019

A Forja

   As trevas estão sendo dissipadas pelos primeiros raios da alvorada, um deles gentilmente me desperta no improvável frio da manhã no deserto. Meus lábios estão ressecados e um gosto amargo faz morada na minha boca, por alguns segundos ainda tenho na memória as doces lembranças do sonho que estava tendo, mas ela evapora assim como a manhã fez com a noite e deixa em meu peito apenas a sensação de ausência.
   Meus companheiros de viagem sugeriram que eu fosse por outro caminho, que os acompanhesse por outra rota, uma que passasse por vales mais amenos onde encontraríamos aventuras no estilo a qual estamos já acostumados.
   Mas nessa época do ano eles sabem que preciso me retirar para o deserto, aqui continuo a busca pela Forja Miraculosa, onde poderia construir o que estou a tanto tempo almejando.
   Ninguém nunca encontrou a localização verdadeira dela, ou se encontrou guardou apenas para si o segredo, apenas lendas falam sobre onde encontrá-la e como ela é. Temo nunca a achar ou pior, já tê-la visto e não a reconhecido.
   Tento afastar os pensamentos ruins e me levanto lentamente, desfazendo o acampamento e pegando o velho cantil de couro, sorvendo água para me despertar completamente. O deserto pela manhã é uma das coisas mais lindas da Criação, tons de vermelho e dourado dançam no horizonte enquanto o vento canta suaves canções sobre tempos imemoráveis. A assepsia da paisagem pega apenas o olhar incauto, pois o veterano dessa parte do mundo consegue enxergar os pequenos animais e as peçonhas  ocultas no movimento das dunas.
   Meu manto vermelho protege me do sol e do vento a medida que o dia avança e já ao cair da noite encontro ruínas de um templo antigo que nunca havia encontrado antes. Questiono-me se meus mapas estão com algum erro, pois a rota que estou fazendo não é nova e este caminho já usei como passagem anteriormente, além de ser uma rota comercial relativamente famosa. Algo assim estaria pelo menos mencionado nos cartas geográficas.
   Encho-me de esperança na expectativa de minha jornada finalmente estar chegando ao final e entro cautelosamente nas ruínas.
   A realidade se impõem novamente esmagando meus tolos sonhos e o templo se revela pouco maior do que uns poucos metros quadrados sem nenhum sinal de Forja. Com meu lampião me aproximo das paredes na busca por alguma pintura ou linguagem que ajude a decifrar aquele misterioso local, mas nada relevante é revelado.
   Decepcionado tento pelo menos me animar com a possibilidade de um lugar seguro para passar a noite. Acendo uma fogueira e começo a assar um rato-do-deserto que havia encontrado durante o dia. Não tarda alguns minutos ouço passos lentos do lado de fora, minhas magias de detecção não notam nenhum perigo iminente - o que sempre me deixa preocupado, pois pode não ser nada ou pode ser algo tão perigoso que conseguiu ludibriar minhas capacidades arcanas - lenta e ritmadamente ouço a aproximação nas areias do deserto e me adianto:
- Quem vem lá? Se busca tesouros veio ao lugar errado, se busca problemas acabou de encontrar.
   Um voz frágil de decrépita responde:
- Misericórdia ó bravo viajante, sou apenas um cego andarilho. Senti o cheiro de vosso preparo e venho humildemente mendigar os restos se não for muito incomodo.
   Na entrada do templo surge um senhor cego, vestido em trapos e usando como guia uma vara e um cão mestiço de orelhas pontudas. A etiqueta dos viajantes fala que nunca se deve negar comida para alguém em necessidade, principalmente no deserto, pois nunca se sabe quando você mesmo estará nessa posição.
- Aproxime-se meu senhor, não tenho muito a oferecer, mas posso compartilhar minha água e meu alimento.
- Louvado sejam os Deuses!
   O estranho se aproxima e conversamos sobre o deserto enquanto dividimos a modesta refeição. Pergunto seu nome, mas ele me responde que se um dia teve um nome, já o esqueceu há muito tempo atrás, lembrava apenas do nome do cachorro, que era Vareta, penso ser uma escolha inusitada para nomear uma criatura, mas coerente com a função que está tendo.
   O senhor é um dos improváveis habitantes do deserto, sempre vagando por dias e dias na esperança de encontrar um oásis ou uma caravana que lhe dê alimento por algumas horas e em seguida retornar a sua eterna caminhada. Questiono-o se não seria melhor ir morar em uma cidade, mas sou prontamente respondido que o deserto é muito mais seguro e tranquilo que qualquer cidade que ele conheça. Isso não posso discordar, mesmo ficando em dúvida sobre a parte da segurança.
- Então, Estranho Andarilho, o senhor sabe algo sobre a Forja Miraculosa? Alguém que passa a vida inteira nessas bandas deve ter ouvido pelo menos uma lenda sobre ela.
- A Forja!? Claro que eu a conheço, estava lá há alguns dias atrás...
   Meu coração dispara. Finalmente posso ter uma pista concreta sobre sua localização e atropelando a fala lenta do velho, pergunto onde ela fica.
   Ele dá uma gargalha que rapidamente se mistura com uma tosse e responde
- Você realmente está pedindo direções para um velho cego e senil!? Hahahaha Pensei que fosse mais inteligente.
   Noto minha inocência e fico cabisbaixo.
- Não fique triste tolo viajante, a Forja está em algum lugar nessa vastidão. Ela não se parece com nada do que você espera, mas mesmo assim, saberá com certeza quando a encontrar.
   Suas palavras não faziam o menor sentido e realizo que pode ter sido apenas um delírio, da idade ou do sol, que o fez pensar ter encontrado a Forja e que sua história não seria nada além do que é. Uma história.
   Mas ele continuou.
- Ela já teve muitas formas e vai ter mais formas ainda. A cada par de horas ela muda de lugar e forma... Não... A cada lua nova ela muda de forma e a cada meio dia ela muda de lugar... Não era isso... era algo no meio disso... Entende?
- Acho que sim - Respondo na esperança que ele fique quieto.
- Ufa, que bom, achava que não estava sendo claro o suficiente. Sinto muito não poder te ajudar a encontrá-la... Agora estou me sentindo culpado pela minha inutilidade... Já sei, em retribuição a sua honrosa hospitalidade e paciência, posso dizer como Ela era quando a encontrei.
- Já é algo.
   Falo em tom seco. Ele parece não se abalar pela minha falta de vontade e começa a contar a sua história, porém noto que as pedras mágicas que servem como fogueira estão estalando em uma frequência maior que o normal e o cãozinho perdeu o interesse nos ossos do rato-do-deserto e está com os olhos vidrados em seus senhor.
- A primeira vez que a encontrei eu era um jovem, provavelmente da mesma idade que você. Ainda enxergava alguma coisa e a vi de maneira que nunca me deixou dúvida a famosa Forja Miraculosa. Não vou mentir que em um primeiro momento fiquei decepcionado, pois era apenas uma fogueira no  Deserto com um ser encapuzado do lado. Me aproximei e fiz o que qualquer idiota faria, perguntei se estava diante da Forja e com uma voz que não consigo descrever muito bem... Seria como se as estrelas tivessem respondido... O misterioso ser disse que sim. Disse ainda que minha busca havia terminado e que poderia criar qualquer coisa ali. Não havia restrições morais nem materiais. Aquele lugar era a última coisa que Deus fez na criação, lá qualquer criatura poderia ser criador, mas para ser criador tem-se que dar algo em troca. Não precisa ser na mesma proporção ou do mesmo tipo do qual a coisa que você criará, precisa apenas que agrade o guardião da Forja... Dei algo e recebi algo... Não lembro bem o que era... Mas era algo importante... Como não lembro de mais quase nada mesmo, acho que não faz diferença, não é?
- Acho que sim...
   Respondo impactado.
   Ofereço minha esteira para o velho dormir e durmo sobre o meu manto em outro lugar. Sonho novamente com doces ilusões que não estão mais aqui e acordo com um vento gelado que salpica de areia meu rosto.
   Quando levanto o senhor não está mais no templo e sob minha esteira vazia encontro um punhado de pedras preciosas, do tipo que já havia acabado há muito tempo nesse lado do mundo.
   Peço ao vento que leve meus agradecimentos a quem as havia deixado aqui e percebo que é tempo de voltar para os meus companheiros.