segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

A beijei

Acabado o jantar, enquanto esperava a hora do jogo, deitei-me na cama e abri um romance de Gustave Flaubert, a minha preferida Madame Bovary. Desde a primeira vez que foi lida, ela se tornou um objeto de minha devoção.



O Beijo - Toulouse-Lautrec

Eu seria um de seus jovens amantes, fugia com ela e me transportava nas ruas, casas e coxas de Bovary. “Sacana essa Bovary”. “Infeliz Bovary”. “Esperta, essa filha da puta!” Sempre gostei das heroínas sacanas.

O que faria se vivesse tudo aquilo ou como seria se Bovary estivesse viva, nesta época, que impressões ela teria de nosso “modus operanti”. Evocá-la era um exercício intelectual divertido, e assim começa minha breve aventura literária, um delírio me ocorreu.

Ela estava em pé, em frente à janela da minha sala, em carne e osso. Vestia-se como Flaubert a descreveu em um dos capítulos do livro: vestido azul enfeitado com babados, pele branca, quase pálida, grandes olhos castanhos diretos. Os lábios não eram tão carnudos como pensei, mas a boca era bem desenhada. Os cabelos pretos deveriam ser longos a julgar pelo tamanho da trança. “Linda Bovary”- pensava, enquanto ela se voltou para mim. “Estás procurando alguma coisa?” Ao ouvir isso me apavorei. Estou louco.

O vulto de Bovary também falava, era ela, e como nunca tivesse existido, portanto, não estava morta. Se ela fosse um personagem histórico, o espiritualismo me ajudaria a compreender o fenômeno, raciocinava; mas como ela foi inventada por um autor do século XVIII, apenas a loucura seria a melhor explicação. “O que queres?”- perguntou novamente, andando em minha direção, com suas saias abundantes e a cintura fina – deixei de raciocinar.

Ela repetiu a pergunta, olhou em volta e se sentou na poltrona. No fim de alguns minutos, conversávamos. Lhe contei em que ano estávamos, país, cidade, dia. Respondi a cada pergunta tentando ser engraçado. “Você quer comer alguma coisa?”

“Sim, estou com fome.”

Enquanto comíamos, ela não parava de me perguntar sobre acontecimentos. Contei-lhe em resumo sobre guerras, arte, música, coisas que pensei que lhe interessariam. Ela me olhava atenta – “continue", dizia-me, quando eu fazia alguma pausa; mas eu não podia mais, a idéia de estar louco falando com o vazio na cozinha me gelou.

“Gostaria de continuar, mas você precisa ir.”- disse-lhe gravemente.

“Não… me fale sobre o amor, sobre Deus, sobre liberdade…”

“Bem – engatei um discurso – o único direito que temos é a morte, e em alguns países a e matar. A liberdade é um bêbado equilibrando-se numa corda bamba. Ser jovem é a única religião; a beleza, a única virtude; o amor é uma doença curada com antidepressivos. Não podemos caminhar nas ruas à noite, durante o dia, com medo; estamos enjaulados nos anestesiando”.

(Pausa).

“No mais, minha querida, todos nós fazemos nossos jogos, às vezes somos peões, rainhas, reis, dependendo das posições… e você, ainda seria considerada louca. Temos a loucura toda classificada em termos e analogias mitológicas, que nos dizem o que está certo, o que está errado conosco, quem está triste, angustiado. E disso você não escaparia com certeza. Você e toda a maioria não batem bem, estão malucos, ou melhor, insanos, por causa de neuroses, medos e porque sonham demais ou de menos”.

(Ataque).

“E você continuaria sendo considerada uma puta, messalina, vadia, sinto-lhe dizer”.

“Desgraçado!”- ela disse, atirando-se em mim.

(Desistência).

Eu a beijei.

Mais em: http://obviousmag.org/archives/2011/01/eu_a_beijei.html#ixzz1Bhc29YuA

domingo, 30 de janeiro de 2011

Minha maldição




Toda vez que começo a pensar
Sempre estou em um balcão de bar
tentando encontrar alguma coisa
que valha a vida no fundo de um copo


ou talvez tentando afogar
meus sentimentos vazios, que
como lágrimas, escorrem pelo meu rosto
me lembrando da saudade


Ó Solidão
você é minha maldição
e eu sou seu abrigo
Ó Solidão
me explique a sua razão
para viver assim comigo


Esquecendo de que a noite cai
e com ela a única certeza
de que é só você que me espera
quando essa dose acabar


Por ora o tempo segue devagar
sigo a risca todas as regras perdidas
com passos leves em linhas sinuosas
sabendo que seus braços vão me confortar



Ó Solidão
você é minha maldição
e eu sou seu abrigo
Ó Solidão
me explique a sua razão
para viver assim comigo

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Titanomaquia: Parte 1 – A Senhora do Universo


Capítulo 2
Da base do monte Ótris surge uma planície que se estende verdejante por algumas centenas de metros até o inicio da densa floresta que circunda o lago Ágape.
E é nesta floresta que a esposa de Cronos busca relaxar quando a convivência com o Senhor do Universo se torna insuportável.
À sombra das grandiosas árvores Réia avalia sua situação. Está subjugada aos desejos de Cronos e sabe que nenhum de seus irmãos sequer tentará salvá-la.
Além de Cronos há outros cinco Titãs. São eles: Oceano, o maior de todos, tão grande que era capaz de circundar todas as terras; Crios, criador dos seres marítimos e detentor de seus poderes destrutivos. Crios possui um corpo escamoso e barbatanas em suas costas que o fazem repugnante aos olhos de Réia; Hipérion, o Titã da visão, pai de Hélios a grande bola de fogo que todos os dias traz luz para o mundo; Jápeto, o mais forte dos Titãs, também conhecido como “O Titã que fere”, pai de Atlas, o Gigante, Menoécio, o ágil, Epimeteu, o impetuoso, e Prometeu, o criador dos seres humanos, os quais estão agora povoando todas as terras; Céos, o Titã da inteligência, o menor dos Titãs em estatura, se igualando a uma das criaturas de Prometeu em altura, enquanto Cronos tem aproximadamente o dobro, entretanto, segundo as palavras do próprio CronosCéos é o mais ardiloso dos filhos de Gaia”.
Réia sabe que todos estes estão sob as ordens de seu esposo, ou ao menos consideram sua permanência como líder supremo dos céus vantajosa. Todos aplaudiram de pé a grandiosa idéia de Cronos de comer sua prole, bem, todos exceto Oceano, o grandioso titã das águas raramente se intrometia nos assuntos ditos por ele como “da superfície”.
De suas irmãs, as cinco Titânides restantes, também não alimentava esperanças de auxílio. Febe, a Titânide com o dom da profecia caíra na lábia de Céos e fazia tudo o que este a pedia. Tétis, se uniu a Oceano e vive em seu reino distante, com suas filhas as Oceaniades. Têmis, sempre envolvida com juramentos e leis se interessara muito pelo comportamento e organização das criações de Prometeu, tanto que os problemas de sua irmã e dos demais titãs lhe eram insignificantes. Téia é a esposa de Hipérion e segue os desejos de seu esposo. Finalmente há Mnemósine a titânide com o dom para a proteção contra o esquecimento eterno oferecido pelo Rio Lete, o de letal esquecimento, pilar da possibilidade de eternidade dos Titãs. Costumeiramente não concordava com Cronos, mas nunca ousara desafiá-lo.
Após essas divagações Réia confirma para si mesma que está sozinha. Sua gravidez já está muito adiantada, ela já é capaz de pressentir as primeiras dores do parto. Isso a preocupou das ultimas vezes. Quando sua prole servia de alimento ao ódio infinito de Cronos. Dessa vez não. Dessa vez chega! É chegada a hora de deixar de se portar como uma escrava diante de Cronos e agir como a Senhora do Universo!
- Eles pensam que estou sozinha, mal sabem que posso conseguir meus próprios aliados!
Réia ergue os braços e murmurando palavras indecifráveis invoca as diversas entidades da floresta. Após alguns segundos de profundo silêncio a primeira ninfa surgisse por entre as folhagens de um arbusto, e outras vieram em sequência, dríades das grandiosas árvores, náiades das límpidas fontes, oréades das formações rochosas, alegres sátiros e os velhos silenos. Numa verdadeira convenção, atraídos pelo grande poder de Réia.
Satisfeita a titânide lança um olhar sobre sua plêiade de seguidores. Num dado momento fixa seus olhos sobre uma bela ninfa de longos cabelos negros e de olhos cristalinos como o espelho d’água do lago Ágape. Era a ninfa que procurava, chamou-a com um gesto e disse:
- Minha bela seguidora Amaltéia, tenho um grandioso dever para ti!
- Estou a tua disposição, minha rainha. Foi a resposta doce, porém firme, da ninfa.
- Pois bem, mantenha-se ao meu lado, precisarei de ti por um bom tempo. Quanto aos demais, rumemos para a Caverna Dicte no Monte Ida, e se preparem para uma grandiosa festa, a festa que homenageará o nascimento de meu filho.
Uma festa tão grandiosa, pensa Réia, enquanto se põe a caminho, que será capaz de abafar os gritos de dor durante o parto e o choro do bebê após o nascimento. Mas e depois? Olhando a procissão que se formara ao seu redor Réia dirigiu-se a um sátiro:
- Você, corra a buscar-me os guerreiros chamados de Curretes, e quero que me venham com suas espadas e escudos em mãos!
- Agora mesmo, Senhora do Universo!

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Coisas da vida

- Hey, cara... que roupas são essas?
- Po, não são minhas... aconteceram umas coisas na minha vida ai, por isso estou usando-as...
- Poxa... pode falar o que que aconteceu.
- Ah... tudo começou quando recebi uma ligação falando que minha namorada tinha morrido, eu fiquei em choque, e como estava com o meu irmão no hospital, visitando minha mãe que estava internada e não podia ser operada por causa do plano de saúde, pedi que ele me levasse até a casa dela, mas ele se recusou, disse que não podíamos sair dali e acabamos brigando. Eu fiquei tão mal com tudo que, não sei como, comecei a usar drogas, mas comecei a me viciar e fui pego usando no banheiro do colégio. Acabei sendo expulso. E como era final de ano não consegui vaga em nenhum outro e acabei repetindo. Ai, mesmo passando no vestibular, não pude ir para a faculdade. Sem parar para pensar acabei me transformando numa pessoa diferente, e meu cachorro terminou comigo, e...
- Pera ai! você disse "cachorro"??
- Ah! Disse, é? Então... me confundi, meu cachorro que tinha morrido, e agora minha namorada que terminou comigo...
- Tá, né...
- Então... ai fiquei mais triste ainda... ai escrevi uma música, dessas de quando um cara é largado pela mulher, e mostrei pro pessoal da minha banda, mas eles a odiaram e disseram que odeiam todas as músicas que faço, então me tiraram da banda. Pensei em gravar sozinho então as minhas músicas, mas quando cheguei em casa ela estava pegando fogo, então perdi a letra e meu violão, e tudo que tinha. Não sabia muito bem o que fazer, então fui a casa de uma tia pedir abrigo. Como estava chovendo minhas roupas ficaram encharcadas, dai ela me deu essas aqui, da minha prima, pra usar, até comprar novas, já que perdi as minhas no incêndio...
- Nossa, cara! Não fazia ideia mesmo que tinha passado por tudo isso...
- Pois é... e você, como está?
- Estou ótimo... ótimo mesmo...

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Titanomaquia: Parte 1 – A Senhora do Universo


Capítulo 1
Em um grande salão circular envolto por colunas de mármore no topo do monte Ótris, Cronos está sentado em seu trono contemplando o horizonte. Da escadaria que leva à entrada do salão surge Céos, envolto em sua túnica marfim. Como sempre apresenta uma aparência que mescla maturidade e jovialidade trazendo um sorriso gentil no rosto. Aquele que lançasse um primeiro olhar sobre Céos poderia facilmente se enganar tomando-o por uma criatura indefesa, talvez, até mesmo um mero mortal.
Mas Cronos conhecia muito bem seu irmão, fez um gesto para que este parasse e perguntou:
- O que traz a minha residência celestial o titã Céos, aquele que é considerado o ser mais inteligente do universo?
Céos agradece o elogio com um meneio de cabeça, ignora o sarcasmo e responde:
- Não há necessidade de tal formalidade entre nós meu irmão. Até mesmo porque venho para alertá-lo.
- Alertar-me sobre o que? Indaga Cronos visivelmente incomodado.
- Febe continua tendo visões, cada vez mais aterradoras... algo está para acontecer Cronos! Devemos nos preparar para uma possível realização da profecia de Ura...
- Não! Bradou Cronos, fazendo com que seus olhos brilhassem como fogo de tamanho ódio. – Não pronuncies o nome do maldito! Estou tomando todas as providências quanto a isso!
Calmamente Céos prosseguiu: - Sei disso irmão, eu mesmo o aconselhei a aprisionar possíveis traidores como os Ciclopes e os Hecatônquiros no tártaro... Mas ainda acho que devemos nos preparar. A prudência é uma atitude inteligente.
Cronos se recompõe em seu trono e faz um sinal. Imediatamente surge de trás de Céos, como que por encanto, uma ninfa portando uma ânfora. Ela se encaminha para Cronos e enche sua taça até a boca com néctar. Isso não impressiona Céos, ele tem ciência de que Cronos sempre está acompanhado de suas Melíades, as ninfas guerreiras. Aquela era Melissa, a doce melíade que servia o alimento do senhor do universo. As demais estavam espalhadas pelo salão, mas ao invés de uma ânfora portavam lanças, escudos, espadas ou arcos e flechas. Camufladas, mas com as armas em riste, possivelmente preparadas para atacar Céos assim que este realizasse qualquer movimento suspeito.
- Pois bem Céos, vejo que simplesmente continuas a ser o covarde que sempre foi. Já tenho feito o necessário, tome tua prudência e desapareça de minha vista até segunda ordem.
- Assim seja meu irmão. Responde o titã mantendo nos lábios o sorriso, parecendo não se importar nem um pouco com as ásperas palavras de Cronos.
Neste momento Réia entra no salão, a titânide se espanta ao ver que Céos está presente. Este a saúda cordialmente abrindo os braços:
- Minha bela irmã! Venha cá me dê um abraço!
Réia ficou indecisa, não sabia se seu esposo aprovaria tal atitude. Ela não gostava de Céos, facilmente o titã da inteligência a confundia. Mas ele parecia tão sincero, vinha em sua direção tão contente para abraçá-la... Ora, como ele bem dissera, era seu irmão, talvez não fosse necessário desconfiar dele sempre como ordenara Cronos.
Após essa cena Céos se vira para o exuberante trono cravejado de diamantes de Cronos e encara o irmão que o olha fixamente enquanto mantém uma mão apoiada sobre o braço do assento e a outra segurando a Gadanha de Diamante.
- Pois bem, deixarei o casal celestial a sós. Já estava mesmo de partida.
Com a saída de Céos o silêncio imperou no recinto. Até ser quebrado por Réia que murmurou timidamente:
- Cronos... estou grávida novamente.
- Assim que nascer traga-o para mim. Foi a resposta seca de Cronos.
Réia baixou os olhos para esconder o choro... Desde que Cronos devorara Hera já se foram Deméter, Héstia, Hades e Posseidon... Este será o sexto.
- Sim meu senhor. Foi tudo o que ela conseguiu dizer enquanto cerrava os punhos buscando engolir sua dor.
Enquanto isso Céos termina a descida do monte Ótris e se encaminha para sua morada na costa do mar Egeu pensativo.
Realmente desposar minha irmã Febe foi uma boa atitude, graças ao seu dom da previsão estou sempre um passo a frente de todos. Infelizmente as visões de futuro são distorcidas pelos acontecimentos presentes e ela não é capaz de me descrever nada com detalhes.
Mas recentemente o dom de Febe vem se manifestando com mais força, algo grande está por vir. Cronos me ignorou, como imaginei que faria, para ele tudo está sobre seu controle, principalmente nossa irmã Réia... Ledo engano Senhor do Universo. Hoje pude ver com meus próprios olhos o que já desconfiava, Cronos domina Réia pelo medo, e apenas por isso. E esse é um péssimo modo de dominação, porque, por mais que o dominado baixe os olhos e se submeta quando diante do dominante, quando distante é capaz de se encher de coragem e bradar impetuosamente de raiva, enquanto maquina modos de subverter aquilo que o atemoriza. E para mim, será num desses momentos solitários de explosão do ódio que Réia causará a nós grandes problemas. Devo me ater a isso e incapacitá-la.

sábado, 15 de janeiro de 2011

Café



Voltando do centro pra casa certo dia, resolvo parar para tomar um café, antes de continuar minha longa caminhada:

Garçonete - Boa tarde, senhor.
Eu - Me vê por favor um pão de queijo e uma xícara de café.
G - Preto?
E - Hein?!
G - O Café. O senhor quer seu café preto?
E - Mas... mas... por algum acaso você serve aqui café de outra cor? Você ao menos já ouviu falar de café de outra cor que não o preto?
G - Não senhor, mas é que...

Depois que se inicia um diálogo desse tipo é melhor ir embora sem o pedido. A garçonete com certeza vai sacanear o pão de queijo, ou o café, ou os dois. Foi o que fiz. Saí irritado, sem pão de queijo, sem café, mas feliz, por ter finalmente me vingado de todas garçonetes que já me fizeram essa pergunta cretina antes.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Paródia


Lembro-me de quando eu tinha 11 anos. Estava de férias, passando da quarta para a quinta série, mudando da tarde para a manhã. Eu era gordo, e havia repetido de ano uma vez, e por isso era o maior aluno de todo o turno da tarde. Alunos do maternal à quarta série praticavam o hábito saudável de respeitar o meu tamanho, tanto que nunca tive apelidos comuns de gordinhos. Essa situação me garantia boa folga, e eu podia andar com os cadarços do jeito que eu queria, e ninguém ia tentar desamarrá-los ou rir da minha cara. De facto, não era bem porque eu queria, mas a verdade é que apesar de ter boas habilidades manuais, eu não tinha a menor intimidade com o maldito cadarço, e meus laços se desfaziam sozinhos a todo o momento. Foi assim que eu entrei na quinta série: seguro, metido e sem medo de nada.
Logo no primeiro dia de aula um menino mais velho (que depois, não me lembro muito bem como, veio a ser meu amigo) roubou meus tênis. Foi fácil até... os laços nem mesmo se pareciam com laços, e o tênis saiu do meu pé como essa fosse a verdadeira função dele. Fui atrás do menino pra bater nele, e acabei levando surra daquelas. Chorando, sujo, triste e sem tênis, cheguei em casa. Fui correndo pro quarto, para que ninguém me visse daquele jeito e passei o restante do dia remoendo o acontecido. 
No dia seguinte fui pra escola de novo. O menino tentou novamente roubar o meu tênis, mas dessa vez sem sucesso. Me acabei de rir da cara dele, e como consequência imediata, apanhei novamente. Mas posso considerar essa surra uma comemoração. A cada pontapé me dava mais vontade de rir. Chegaram mais meninos mais velhos, e cada um deles se esforçou para tirar os tênis dos meus pés sem, no entanto, nada conseguir. A Diretora do colégio veio, separou todo mundo, e fez o procedimento padrão para esse tipo de situação num colégio. 
Nesse dia voltei pra casa sorrindo, sujo e calçado, e admirando minha solução, pensei: "Laço é coisa de boiola; baum mermo são esses nós cegos!"

O fato relatado é verídico. Eu usei nós cegos no tênis até os 18 anos, quando aprendi, mais ou menos, a fazer uns laços decentes.

Titanomaquia: Prólogo


O horizonte se enegrece. Por mais uma noite Urano vem deitar-se sobre Gaia a fim de suprir sua sede inesgotável de desejo. A espreita, mantenho os olhos fixos no ser de proporções colossais que se aproxima. Meu entorno é iluminado de forma salpicada pelo reflexo da gadanha diamantina que mantenho firme em minhas mãos. Forjada das entranhas de Gaia, minha mãe, com o mais resistente dos materiais será a arma para o ocaso do império deste ser bestial que aprisionou por ódio e temor seus próprios filhos no ventre da criatura da qual abusa todas as noites.

Todos os outros tiveram medo, todos os demais Filhos da Terra tremeram ao cogitar enfrentar o senhor dos céus... Mas cá estou! Cronos, de arma em punho a fitar meu pai, meu inimigo. Hei de mostrar que quem manda aqui sou eu, e mais ninguém.

Urano se aproxima do leito, mal sabe que nunca mais o fará da mesma forma, pois em sua distração avanço e de um só golpe decepo sua genitália lançando-a ao mar. O urro do Deus veio acompanhado de uma torrente de sangue sobre a Terra, um urro gutural que fez tremer a todos os titãs, exceto a mim. Eu me mantenho de pé, sobre uma rocha e contemplo o tom rubro do qual o céu está tingido e o comparo ao líquido avermelhado que marca o fio de diamante de minha gadanha. Olho a volta e vejo minha mãe, Gaia, satisfeita com o fim de seu martírio e meus irmãos se mostrando timidamente ao mundo.

Eis que dos céus sopra um vento medonho, as nuvens se retorcem em um vórtice cinza-avermelhado e o rosto de Urano brota ameaçador e sentencia: “Filho traiçoeiro, semente malograda, expurgo maldito de minhas entranhas! Cronos, assim como me destituíste do trono do Universo um de tua linhagem o destronará!”.

Então o vórtice se intensifica e desce sobre mim, juntamente com um riso aterrador que mistura crueldade e dor e o mundo se contorce a minha volta... cada vez... mais... rápido...

Cronos acorda de olhos esbugalhados. Novamente as mesmas lembranças atormentam seu sono. É preciso encontrar um meio de inutilizar a prole que advirá de sua união com Réia, a Titânide que escolhera para reinar sobre o universo como sua esposa. Sendo descendente dele esta prole seria certamente imortal, logo aprisionar a todos viria a ser o mais plausível dos planos.

Mas que prisão neste mundo guardaria tão forte descendência?

Enquanto o Rei dos Titãs maquinava a defesa de seu império universal sua esposa Réia dava a luz a sua primeira filha. Uma menina de beleza embevecedora, a quem deu o nome de Hera. Após o parto Réia correu a mostrar a suas cinco irmãs Titânides sua maravilhosa cria. De pele tão sedosa, de olhos tão vívidos, de sorriso tão franco...

Quando considerou que a jovem Hera já havia sido mimada em demasia por suas tias a levou para que Cronos a visse. Réia presenciara a profecia de Urano, e sabia mais do que qualquer outro ser do incomodo que sua gravidez trouxera a Cronos, entretanto era certo que ao ver tão bela criaturinha o coração do Titã se enterneceria.

Sentado em seu trono Cronos vê sua esposa se aproximar com uma pequena criatura envolta em panos. Réia entrega Hera nas mãos de seu pai.

- Veja Cronos, como ela é linda! Olhe para ela e me diga, tal mimo de criatura pode fazer mal a algum ser?

Cronos com o bebê em mãos estava pasmado, com o pensamento longe.

- Olhe para ela! Insistiu a desavisada Réia. – Veja como é fofa, como seu corpinho é delicado. Ela não é uma delícia?

Neste momento um brilho de vivacidade passou pelos olhos de Cronos, Urano errara ao entravar seus filhos dentro de Gaia gerando a ira desta. Ele faria diferente, carregaria ele mesmo sua prole aprisionada, assim olhou para a pequena Hera e concordou:

- Realmente, uma delícia, dá até vontade de morder.

E escancarando a boca engoliu a pequena Hera ignorando os gritos de agonia de Réia. E antes que esta apresentasse uma queixa emendou:

- E que cada um que nasça me seja trazido imediatamente. Isso é para que todos saibam, aqui mando eu, e ninguém mais!


segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Aos meus amigos, aos cadarços...

Lembro-me de quando eu tinha uns cinco, talvez seis anos... não não, eram exatamente seis anos, e estava me arrumando para o primeiro dia de aula, e minha mãe me chamou e disse que estava crescendo e já devia amarrar sozinho os meus tênis. Fiquei assustado e orgulhoso: assustado por ser responsável por mais uma coisa e não saber se daria conta, e orgulhoso que era mais um passo para a minha independência, que nem sabia o que significava, mas depois de grande consegui definir o que senti. Então ela começou a me ensinar contando uma história sobre coelho - que voltaria anos depois para me ensinar a dar nó em gravatas - e suas orelhas. Achei um pouco complicado de início, mas depois peguei o jeito.
Fui à escola feliz dessa vez, talvez quem me encarasse veria um sorriso, nem que fosse em meus olhos. No intervalo - chamado de recreio, na época - sentei-me junto a um colega e contei a ele o que tinha aprendido, então ele olhou para o meu pé, esticou a mão, e, sem exitar, puxou a ponta do meu laço e o desfez. Ele começou a rir e eu calmamente fui refazer o que meu colega desfez, afinal, eu tinha aprendido. Porém comecei a errar, a ficar nervoso, e aquela risada e depois aquela musiquinha "não sabe, não sabe..." e eu desisti, abaixei a cabeça e voltei para a sala, fui o primeiro, para que quando todos chegassem eu já estivesse sentado e ninguém visse meu cadarço desamarrado. E o contrário no fim da aula, quando fui o último a sair.
Cheguei em casa triste, nem me lembrava mais o quanto fui feliz no mesmo dia, e fiquei esperando minha mãe voltar do trabalho, e quando o fez, fui direto até ela, meio indignado (outra palavra que nem sabia que existia) para que me explicasse o que aconteceu, poxa, queria saber porque foi tão difícil aprender a fazer o laço e era tão fácil desfaze-lo. Então ela sorriu, como se pensasse "eu sabia que isso aconteceria", talvez por ela ter passado por isso ou meu irmão mais velho, e me disse que para caminharmos na vida, independente do caminho escolhido , temos que estar prontos, ou seja, termos calçados apropriados, mas, tão importante quanto, era amarrá-los bem, ela queria dizer criar laços, saber confiar sem precisar olhar para baixo. E que realmente isso era mais difícil e que muitos seriam os que tentariam desamarrá-los nesse caminho. Então eu perguntei se toda vez que alguém desamarrasse eu deveria abaixar-me e refaze-lo. E ela respondeu que muitas vezes sim, a solução era levantar e continuar andando, mas eu poderia me precaver (não com essa palavra, claro) e fazer um laço mais forte, para eu caminhar sabendo estar seguro, que meus cadarços nunca me abandonariam. E então me ensinou aquele laço duplo.




Esse é meu texto em homenagem ao primeiro ano do Mente Insana, e para dizer que é um prazer dividir esse espaço com vocês, meus amigos.

domingo, 9 de janeiro de 2011

E no final é tudo uma rede

Amigos e desconhecidos,

Peço que percam 20 minutos do seu dia para, talvez, ganhar um mundo novo.



“Não usem velhos mapas para encontrar novas terras”

sábado, 1 de janeiro de 2011

E começou 2011




Chegamos ao fim de mais um ano. Confraternizações, espumantes, fogos e pessoas com a certeza de que após a meia noite tudo será melhor. Deveras interessante esse hábito social difundido por quase todos os países do mundo de comemorar o Ano Novo como um momento de renovação. Mais do que isso, um momento de renovação mágica, instantânea.

Considero um tanto quanto estranho esse fato, afinal, todos os anos esses rituais se repetem, e as pessoas não aprendem que não é dessa forma que funciona. Ao realizar tal ritual diversas vezes as pessoas deveriam se dar conta de que nada muda realmente de forma súbita, que comer lentilhas não traz dinheiro, e passar o ano novo de cueca preta não traz sexo. As pequenas coisas da sua vida é você que muda, as grandes coisas do mundo suas ações ajudam a mudar.

Mas é desnecessário dizer o que deve ser feito, o que deve ser mudado. Pois ao prestarmos atenção nos pedidos para o próximo ano vemos que neles há uma carga de verdade considerável. A grande maioria dos indivíduos sabe como melhorar sua vida, e daqueles que estão próximos, em alguns casos até daqueles que estão distantes, com atitudes simples.

Mas, infelizmente, o que acontece é uma irritante procrastinação hipócrita. São feitas listas de ações que mudarão nossas vidas no próximo ano, para serem esquecidas nas gavetas. São feitas simpatias para conseguirmos dinheiro, amor, paz, e sentamo-nos no sofá a espera de que nossos desejos nos persigam.

Não é óbvio que se estiver insatisfeito com meu peso, comer um cacho de uvas na noite de 31 de dezembro não vai me deixar no peso ideal? Que se considerar a política uma arte corrompida no país é mais útil pesquisar um bom candidato antes de votar do que estourar um espumante e brindar dizendo “Que esse novo ano tenha menos escândalos políticos!”?

Para mim o Réveillon é uma ótima oportunidade para refletimos, entretanto, se não agirmos a partir de tais reflexões nada se modifica. Talvez esteja na hora de deixar de se preocupar com a cor da roupa íntima e sair na rua disposto a desejar um bom dia sorrindo para quem encontrar. As chances de receber algo bom de volta vão aumentar consideravelmente.