segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Canções de Marte

A chuva cai na lona sustentada pela armação de metal do fundo caminhão, sua intensidade aumentou muito nos últimos minutos, o vento e as goteiras são um gélido lembrete que ela não pretende passar tão cedo e alguns milímetros de tecido grosso desse velho Red Ball nos separam de congelar no frio nessa noite.

Fico apreensivo, pois o barulho da chuva e o ronco do motor dificultam ouvir qualquer aproximação que possa acontecer e caso estejamos em risco só perceberemos quando for tarde demais, contudo, escuto um improvavel som vindo da parte mais externa da caçamba, a parte mais castigada pela chuva.

Lentamente o som vai tomando corpo nos tímidos sussurros de quinze soldados que estão sendo levados para o campo de batalha. O cabo que está sentado na minha frente ensaia uma bronca, mas faço sinal com a mão para que deixe os meninos.

A música que estão cantando baixinho dá um pouco de alento nessa tempestade, vejo que muitos dos que estão no coro, assim como eu, não conhecem a letra mas fazem um humhumhum para ajudar que essa pequena luzinha de conforto não se apague. As partes que consigo distinguir do rugido do motor e da chuva fala da saudade de casa e sobre uma garota que vai ficar esperando na janela até que seu amor volte.

É o meu terceiro tour nessa guerra, já levei centenas de combatentes por esse caminho que estamos e sei que um sem número de garotas receberam cartas com plaquetas de metal ao invés de seus amados no decorrer desses anos e em poucas horas esse garotos que mal começaram a criar pelos no peito vão ser jogados nesse jogo voraz que já consumiu tantos dos nossos.

O ponto final dessa viagem os fará ter saudade do campo de treinamento, fazendo até o rastejar na lama e os insultos do instrutor parecerem o paraíso perto do que enfrentarão nesse solo estrangeiro e essa canção que estão entoando talvez seja a última coisa que eles podem fazer antes de serem forçados a se tornarem homens.

Na noite escura, em um caminhão velho a vida segue cantando em direção à morte.




Um comentário:

André M. Oliveira disse...

A vida sempre segue em direção a morte. Por vezes olhando-a nos olhos, por outras se esquecendo dela absorta pela paisagem que encontra no caminho.
Sigamos, se possível cantando.