segunda-feira, 11 de maio de 2020

O olhar de quem quarentena

Um passante com uma flor em mãos. Quatro da tarde. Seis continentes. Duzentas mil mortes. Duzentas mil vidas. Um observador de sua sacada. Muitos carros. Milhões de indagações. Nenhuma explicação. O passante mascarado passava. As horas corriam. O observador observava. O mundo girava, enquanto parado, por mais uma jornada. Parado para quem? Era dia e então já era noite. Às vezes o observador trocava um pelo outro. Dessa vez, por ter conseguido ver tão bem, era dia. Parecia injusto o passante passar com tanta objetividade carregando aquela flor. O observador só poderia imaginar o porvir da cena, mas nunca saberia. Como ficam as histórias de amor quando todos são obrigados a ficarem distantes? Há uma lacuna na vivência de contos da Terra? É esse mais um conto coletivo? Talvez todos os amantes desrespeitem um pouco o decreto de isolamento. Talvez pudessem morrer de tristeza, em vez de virose. Talvez os duzentos mil mortos também o fizessem, estivessem eles vivos para amar.  Talvez aquele passante estivesse indo amar alguém em segredo, sem saber que era observado; sem saber que o maior desejo de quem o observava era, também, poder amar, sem carregar nas costas o peso de todas as vidas que continuariam a ser amadas quando tudo passasse, se não estivessem perdidas. 
O passante passado e a injustiça aceita fizeram o observador quitar seu olhar para baixo. Olhou, agora, duas horas depois, para o céu. Já havia uma estrela. Uma pipa apareceu e rapidamente sumiu por trás de outra casa. Uns oito pássaros iam e vinham. Talvez contar o tempo, os pássaros, as pipas, as estrelas, preenchesse um pouco aquele vazio que parecia existir no mundo... em si, já que não se podia contar com a colaboração de outras pessoas para a contenção de um mal global. Da sacada, o observador observou tudo: o passante passar, os elementos da mesma paisagem de sempre, o dia virar noite, a dor do mundo, a dor de si. Fechou o lado de lá junto à porta que o conectava com ele – a da sacada –; abriu a porta de dentro para primeiro se curar. Depois, quiçá, permitir-se-ia indagar mais. Pode ser que daí viesse alguma resposta. Que aquele passante vá e ame e volte protegido de sua aventura, enquanto o observador se protege a esperar.

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