quarta-feira, 10 de março de 2010

Canções e silêncio - Parte I - A canção mais fria já cantada


Por que? Tenho me perguntado isso desde que encontrei teu corpo inerte no chão. Meu lamento ao te ver neste estado foi tão triste que todas as árvores ao redor perderam suas folhas, a grama ficou amarelada, os insetos se silenciaram e todas as aves pararam de cantar, algumas até fugiram na tentativa de não escutar meu choro.

Examino-te. Ainda tens o corpo suado. Nos teus pés encontro as marcas da picada que tirou lhe a vida, e junto com ela toda a beleza da minha existência.

Tuas pegadas indicam que antes de chegar a este teu último cenário estava a fugir. Mas fugindo de quem? Alguma fera teria coragem de atacar a musa pela qual canto?
Algum monstro poderia pensar em destruir tua alva beleza? Ou será que fugia de algum homem sem alma?

Estas perguntas agora são inúteis.

Tu que transformava todos os dias em espetáculos de inigualável beleza, agora me deixaste apenas as trevas mais soturnas como herança. Este buraco em minha alma, este lugar onde jamais nenhuma outra flor nascerá.

E então ele pegou novamente sua lira e começou a cantar a música mais fria que já foi criada, de tão triste, tudo ao seu redor começou a se tornar cinza.

Seu canto ecoou por todo o mundo, não existia ser, mortal ou imortal que não houvesse sentido um aperto indescritível no peito e uma súbita vontade de chorar.

As ninfas que sabiam o que havia ocorrido ficaram incapazes de contar-lhe a verdade e começaram a chorar.

Ares que estava tendo uma discussão acalorada com Athena, parou seu conflito com a Deusa e, por um momento, pensou em abraçá-la para sentir um pouco de calor, pois aquela canção estava corroendo os corações até dos excelsos deuses olímpicos.

Zeus, que o observando tudo de seu áureo trono no topo do Olimpo resolveu interceder e mandou Hermes ao encontro do poeta.

Chegando ao encontro do artista o deus mensageiro viu a imagem tétrica que havia se formado ao redor do poeta e segurando as lágrimas se pronunciou.

“Grande são as glórias de ti, Orpheu, o poeta, filho de Morpheus¹, senhor dos sonhos, honrado estou por estar em tua presença, mas o assunto o qual venho tratar em nome do todo poderoso Zeus, não é dos mais auspiciosos. Venho lhe ordenar que pare com esse canto ou todo o mundo se afundará em trevas mais sombrias que o Hades².”

Orpheu já havia parado de cantar, mas a aura lúgubre continuava; e se voltando para Hermes disse.

“Ó, mensageiro dos deuses, compreendo tua ordem, mas sou incapaz de cumpri-la. O frio que toma o mundo é proveniente do sentimento que agora habita em meu coração.

Quando os deuses resolveram afastar de mim Eurídice deveriam ter previsto o que aconteceria, já que ela era o único motivo pelo qual meu coração batia.”

Hermes, o Deus da eloqüência, estava sem palavras.

Ele sabia que nem o poder de todo o Olimpo reunido seria capaz de impedir o que estava acontecendo, pois o que havia se formado naquele local era feito de um sentimento que fora maculado e nenhum Deus em toda a criação tem poder contra um sentimento tão forte.

Não vendo outra alternativa resolveu oferecer ao poeta uma alternativa, que mesmo perigosa, poderia resolver seu problema.

“Maior entre os poetas, mesmo sendo o Deus dos viajantes e conhecedor de caminhos que vão muito alem da compreensão dos mortais, observo tua dor e não a consigo entender, não creio que o que sentes esteja dentro do domínio de Aphrodite ou de seu filho Eros. Teu coração seguiu por um caminho que nem mesmo os Deuses são capazes de trilhar. Mas mesmo assim, como preposto de Zeus, lhe ofereço a única alternativa capaz de acabar com tua desgraça.”

“E qual seria, ó conhecedor dos mistérios deste e dos outros mundos?”

“Lhe mostrarei o caminho que leva até o Rio Estige, lá encontrará Caronte, o barqueiro das almas, e com ele terá acesso aos domínios de Hades, o soberano do submundo. Hades tem em seu poder a alma de sua amada e somente ele poderá devolve-la a você.”

“Tuas palavras fazem meu coração voltar a vida tal qual a fênix das histórias, antes mesmo de que minha jornada comece, já sou grato a ti. Por piedade me mostre logo o caminho que me levará até a senhora do meu destino.”

Então Hermes com um movimento de seu caduceu apontou o caminho para o qual Orpheu tanto desejava.

Fim da Parte I

¹Em algumas versões do mito Orpheu é filho de Apolo, mas acho mais interessante a versão em que é filho de Morpheu, pois todos os artistas tem sua gênese no reino dos sonhos...
²Hades é o nome tanto do Deus quanto do domínio.

6 comentários:

Stéfs disse...

Gostei muito do texto!

Bem envolvente e intrigante!
Mal posso esperar pra ver a parte II!!

bjs!

Ludmilla disse...

Legal!
O Orpheu tá parecendo um bardo com um tido de caixa de Pandora dentro do coração, e tudo isso dentro do filme Amor Além da Vida, que o Robin Williams vai até o inferno buscar a mulher.
Just great!

Tarso "Carioca" Santana disse...

Nossa! Pela que a Lud falou o texto ficou beem doido.
- Dever cumprido! -

Que bom que vocês gostaram,sou novo no campo dos épicos mas acho que o resultado foi bom.

Valeu pelos comentários!

André M. Oliveira disse...

Muito bom Tarso!
Parabéns mesmo!

Wolv disse...

Eu prefiro a versão da história que conta que o Orfeu era um humano bundinha, mas que nasceu com o dom da música.

Renato disse...

Muito bom, Tarso... bastante comovente a forma com que contou a primeira parte deste que é o mais belo mito de todos os tempos. Definitivamente,o nome atual do Styx é Mississipi:

http://www.youtube.com/watch?v=QwjGytOVVQA


Abraços e vê se escreve logo a última parte, cacete.