quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Devaneios







Estou sentado na beira do cais. Fim de tarde. Na avenida que margeia o imponente rio o crepúsculo constitui um espetáculo para os olhos, enquanto a brisa suave, como uma dádiva de Zéfiro, me envolve docemente. Alheio a estes fenômenos um individuo de passos ébrios e olhar soturno caminha na minha direção.

Seu caminhar descompassado e seu olhar perdido demonstram que sua mente está distante de seu corpo. Perdido em seus devaneios o ilustre transeunte olha a paisagem, vendo mais do que realmente há.

Os últimos raios de sol batendo em seu rosto fazem-no enxergar a si próprio com seus dezoito anos, durante a última discussão com seu pai, olhando através de uma vidraça para o pôr-do-sol, sem coragem de fitar-lhe o rosto. Um misto de dor e resignação.

O frescor do vento na pele o remete a imagens fúnebres, uma tarde escura no cemitério, com a mesma brisa, quando enterrou aquela que considerava a mulher de sua vida. Um desespero nauseante aflige sua mente.

Estando mais próximo agora, percebo a melancolia descompassada de sua face. Como em um filme vejo-o caminhar diante de mim e posso ver seus mais íntimos sentimentos.

Ele chega até o cais e encosta na amurada. Hélios descansa no horizonte permitindo o inicio do domínio das trevas sobre o firmamento. Tudo que aqueles olhos pediam era que as coisas entrassem em ordem. Surgem as primeiras estrelas acompanhadas da Lua cheia, já imponente. Tudo que aqueles olhos queriam era um caminho. Uma ordem para a vida, ou mesmo para a morte. Não queriam mais depender do otimismo para superar o caos.

Estou a poucos metros dele, ainda na beira do cais. Emana de sua transpiração um tímido desejo de morte. Ele me encara de relance com um olhar dúbio, parte dele quer ajuda, outra parte quer paz. Quer ordem. O indivíduo olha fixamente para a água. Sei que ficando aqui minha presença o impede de agir. Logo, certamente ele viverá. Mas, não gosto de certezas, prefiro o inebriante sabor da dúvida. Por isso levanto-me e lanço a sorte atirando uma moeda ao rio antes de me retirar, por via das dúvidas que deixe paga a barca de Caronte.

Caminho envolto pela extasiante névoa noturna. Já distante olho para trás, ele não está mais no cais. Fico com minha doce e inquietante dúvida sobre o destino daquele homem, o qual olhou para a ordem de sua vida de dentro de seus devaneios, até que a ordem tornou-se o limiar do caos, fazendo-o crer que tudo tornara-se nada, e que nada era mais do que o suficiente...

7 comentários:

Ludmilla disse...

Ah, "depender do otimismo para superar o caos", genial!

Bom, se você reparar, muitas pessoas mais velhas costumam dizer que essa hora do sol dormir, quando a gente menos enxerga as coisas, é a hora do dia mais melancólica, traz aquele tipo de paz que vem com um pouco de tristeza e solidão. Eu concordo com elas.

Que confortante passar por alguém que lembre de pagar a barca nos momentos em que você acha que tudo torna-se nada e que nada é mais do que o suficiente.

Tarso "Carioca" Santana disse...

E eu pensando que ia ser o unico a entender o texto...
rs

Mandou muito bem Pika!

Abraço

Wolv disse...

Mandou benzão.
Gostei principalmente da filhadaputisse que o cara faz no final. Sai de perto e deixa o outro se fo##! Tu és um belo d'um sacana Sr. Pika.

André M. Oliveira disse...

Wolverine, agradeço pelos elogios, mas não me cupe pela conduta do meu personagem, apenas transcrevo as ideias. hehehehe

Tarso, agradeço o elogio, mas fico feliz por vc estar errado quanto ao entendimento do texto pelos leitores.

Ludmilla, agradeço a forma poética como elogiou meu texto. Nós do Mente Insana em Corpo São temos trabalhado com afinco para que os textos sejam feitos com o máximo de qualidade possível.

Stéfs disse...

Simplesmente perfeito!

Obrigada a todos por me aceitarem no blog!
Vou procurar fazer meus textos chegarem ao nível que vcs todos esperam!

Parabéns pelo texto Pikachu!

Anônimo disse...

É o Poder, Dodô é o Poder!

Você e suas crônicas heim senhor Pika!
Boa essa, transforma em livro!


Acho que vou reabrir a franquia "Glingown", uma vez que a facul só começa no 2º período...

Unknown disse...

aaaaahhhh sim... agora eu li
ficou bacana sim, mano...
bom vocabulário, boas intertextualidades, curti sim... e como o Wolv disse, "Gostei principalmente da filhadaputisse que o cara faz no final." HUAUHAHUAHUHAUAUHUHAUHA