quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Déjà vu



- Perdão?

- É isso mesmo meu senhor, é Asilo Elefante. Agora o senhor poderia sair logo. Está atrapalhando a fila.

Como alguém poderia chamar um asilo de Elefante? Tanto faz, peguei a informação que precisava no balcão do INSS sob olhares cansados de dezenas de pessoas que esperavam na mesma fila na qual passei a últimas 3 horas esperando.

Foi muito tempo. Não estou me referindo às 3 horas gastas no calor do Rio de Janeiro no início de dezembro, estou falando sobre os 30 anos que passei sem saber quem eram os meus pais de verdade.

Por mais que você seja amado e bem tratado - como foi o meu caso - quando se é adotado sempre fica uma “náusea”, como provavelmente diriam os existencialistas. Essa agonia vai crescendo e um dia você toma coragem para ir atrás do seu passado perdido.

Digo perdido porque não me lembro de nada antes dos 10 anos de idade. A última lembrança que tenho foi do dia em que um casal que supostamente seriam os meus pais, me tirando de uma casa grande, onde tinham várias outras crianças, que eu achava que eram os meus irmãos.

Os psicólogos disseram que esse bloqueio pode ter sido causado por algum trauma ou coisa do gênero. Não entendo nada dessas coisas de psicologia. Mas se eles disseram, deve ser verdade.

O que realmente importa é que agora vou poder reencontrar minha família. Ou o que sobrou dela.

A busca pelos meus familiares demorou anos. Estava no final da faculdade quando comecei. Descobri que meus pais morreram afogados em um acidente idiota em Angra quando ainda era um bebê e que os meus avós por ambos os lados estavam todos mortos também. Todos não, quase todos. Pois o meu avô paterno ainda estava vivo. No Asilo Elefante.

Quem que dá o nome para esses asilos?

Pensava nisso enquanto comprava uma passagem para Barra Mansa, de lá seria tomar só mais um ônibus e em mais umas três ou quatro horas poderia encontrar alguém que realmente tivesse laços de sangue comigo.

Será que ele iria gostar de me conhecer? A náusea se transformou numa revoada de borboletas. Estava com a barriga borbulhando, a sensação é parecida com aquela que temos quando vamos dar o nosso primeiro beijo ou quando vai sair o resultado do vestibular. Não é boa, mas definitivamente não é ruim.

Barra Mansa é feia. Fico imaginando que tipo de urbanista deixou alguém construir um cidade em que todas as casas são feias. Dessa vez não tem exceção. Todas são feias mesmo. São sobrados que lembram blocos de concreto com um varanda improvável no último andar.

Quando eu for construir uma casa com certeza ela não será assim.

O toque do celular me faz parar com essas divagações e me lembra que já estou chegando.

Na tela vejo que tem seis chamadas perdidas. Havia esquecido de avisar para os meus pais que não voltaria para Petrópolis hoje. Saco.

Ligo meio constrangido:

- Oi mãe.

- Oooh Betinho, aconteceu alguma coisa? Já são quase sete e meia. Você já tá no ônibus pra casa?

- Não exatamente. Descobri onde o meu avô tá...

Esse comentário faz surgir um silêncio constrangedor.

Nos últimos vinte anos foi o Vô Nicanor e o Vô Abílio que tinham o título de avô. Agora um desconhecido seria nomeado, por direito de sangue.

Situação chata. Tento concertar:

- É... bem... o pai do meu pai....

As tentativas parecem fazer piorar o estrago.

Ela fala com uma voz de quem vai cair em prantos a qualquer momento:

- Ah... Tá bom meu filho... Toma cuidado tá? Se lembra que família é aquela que te dá carinho e amor. Seu avô pode ser seu avô, mas não esquece que você também tem outros que são seus avós tanto quanto o seu avô.

Dona Cristina, que tinha o título de mãe, sempre se embaralhava quando ficava emocionada. Não existe motivo para culpá-la, eu também não saberia o que falar.
Conto para ela onde estava e digo que se tiver sorte volto ainda hoje para o Rio e durmo na casa do Carlos, que ainda mora perto da UFRJ lá na Praia Vermelha.

Agora que percebi que horas são. Detesto o horário de verão. Os dias no verão já são naturalmente longos, quando você faz uma artimanha no relógio e adiciona uma hora, o dia parece nunca terminar.

E foi assim, no começo da noite, que ainda era dia, após enfrentar o saculejo da estrada de terra, que cheguei no Asilo Elefante.

Não tinha placa ou indicação alguma que mostrasse o nome do Asilo que procurava, mas o imponente elefante pintado na parede não me deixou dúvidas. Por um momento fique preocupado pensando na possibilidade de alguém impedir a minha entrada, visto que não possuía nenhum documento oficial que confirmasse o meu vínculo de parentesco, somado a isso, o horário já avançado poderia complicar ainda mais a situação.

Como não tinha nada a perder entrei na casa e me deparei com uma jovem, com pouco mais de vinte anos, vestida de toda de branco, que arrumava as suas coisas para ir embora.

Logo pensei que se trataria de alguma enfermeira ou recepcionista e por isso perguntei:

- Olá!? Desculpe o horário, mas preciso muito fazer uma visita.

Ao ouvir minha pergunta ela levou um pequeno susto, como se eu fosse um fantasma camarada.

- Nossa, o senhor me assustou – Respondeu a jovem – Não está no horário de visita, mas se for tão importante assim, posso ver com a Helena o que podemos fazer.

Agradeci com um sorriso e ela entrou por uma velha porta de madeira que pareceu estar empenada, já que a moça fez uma força incomum para abrir e fechá-la.

Momentos depois ela voltou acompanhada por uma pequena senhora com cachos loiros e cigarro na mão. Por entre óculos embaçados ela me olhou de cima a baixo e disse com uma voz rouca e grave:

- Quem você quer ver?

- O senhor Francisco Rodrigues. Ele é meu avô e preciso muito falar com ele.

- O coronel Rodrigues nunca recebe visita... Você tem meia hora para falar com ele, caso perceba que essa visita está incomodando ele, ela acaba na mesma hora. Estamos entendidos?

Concordei com um sinal de cabeça e passei pela porta empenada. Enquanto caminhávamos por um pequeno corredor ela disse:

- O coronel Rodrigues está muito velho, sua memória está falhando muito. Por favor, não canse o coitado.

Pude notar uma certa mistura de compaixão e severidade em suas palavras, esse tipo de mistura só costuma acontecer nas pessoas que dedicaram a vida toda a um serviço de contato com um público muitas vezes arisco a ideia de alguém o estar ajudando.
Pode parecer loucura, mas criei uma espécie de admiração por aquela senhora, imaginando por que tipo de situações ela já teve que passar naquele asilo.

- Ali está – apontou para um senhor folheando uma revista, sentado em um banco próximo a uma janela – Meia hora.

Concordei novamente e ela me deixou a sós com ele.

O que eu iria falar? Não havia pensado nisso durante todo o caminho. Não poderia simplesmente chegar e falar “oi! Sou seu neto”. Precisava de um plano. Mas o Destino preparou outra daquelas suas surpresas quando o senhor levantou e me abraçou com os olhos cheios de lágrimas.

- Paulo! Quantas saudades eu senti de você! Não devia deixar o seu velho pai preocupado desse jeito!

Fiquei sem reação. O abraço era de um ternura incomensurável. Não podia simplesmente falar para o velho homem que me chamava Roberto e que na verdade era o seu neto, já que o seu filho tinha morrido há muito tempo.

- É p... pai... estive viajando por muito tempo, não pude mandar noticias...

Ele soltou o abraço e me olhando nos olhos, com um sorriso decorado com lágrimas começou a falar em um tom meio encabulado.

- Não tem problema! O importante é que você está aqui. Não sei o que aconteceu com você, está mais gordo e com um corte de cabelo idiota, mas parece saudável. A Aninha já teve o bebê?

As palavras dele, imunes ao feitiço do tempo, eram de uma inocência cortante. Para continuar a conversa, tive que segurar as lágrimas e raciocinar o mais rápido que conseguia.

- Sim... É um menino forte e saudável. Tem os olhos da mesma cor que o do senhor. Você ia gostar de conhecê-lo.

- Tem uma foto dele ai com você?

- Não...

- Não criei filho meu para ser um pai ruim! Parece que não aprendeu nada comigo. Eu sempre carrego uma foto sua carteira. Trate de ir naquele fotógrafo que te lavava, lá no Botafogo, e tirar uma boa foto. E depois tirar duas cópias. Umas pra você outra pra mim.

Não consegui resistir e meus olhos se encheram de lágrimas, ao ver aquele homem com o tempo tatuado no corpo, se esforçando para manter uma coisa tão intangível nos dias de hoje, como família, viva.

- Não seja tão maricas Paulo! - O velho disse isso ao ver uma lágria escorrer furtivamente pela minha bochecha – Seu erro foi grave, mas tem remédio.
Estava aqui lembrando da época em que morávamos no Rio ou era no Paraná? Não importa. Você mal tinha acabado de sair das fradas e já estava no colégio. Eu estava servindo no quartel como segundo tenente e a sua mãe todo domingo fazia aquela torta de frango que você adorava.

Nossa mesa não tinha muita fartura, mas nunca deixei faltar nada pra vocês. Isso que um homem que se preze deve fazer. Respeitar a família e mantê-la com dignidade.

Ouvia as palavras atentamente, mas não pude deixar de perceber que mesmo com o esforço para demonstrar toda a sua pose de pai, ele tinha um cansaço gigantesco acompanhando cada palavra. Cada pausa carregava a incerteza de que se teriam forças para continuar o discurso.

Pode parecer um tanto quanto egoísta a minha curiosidade por fragmentos de uma história que não era minha, mas a sede por essas histórias eram ainda maiores.

- Pai... o senhor podia me contar mais sobre a minha infância? Eu não lembro muita coisa...

- Você devia se preocupar com essa sua perda de memória, ainda é muito novo para ter essas doenças de velho.

Como ia dizendo, quando servia perto de Belo Horizonte, você tinha entrado no colégio e sempre recebia anotações na cartilha. Os professores diziam que você era muito levado e por isso sempre te davam umas palmadas e deixavam de castigo na hora da merenda.

Por mais vezes que eu e sua mãe tivéssemos ido a diretoria por causa das suas traquinagens, você nunca foi um menino mal.

Eu me lembro de uma vez que você sumiu com a torta da sua mãe, para dá-la ao Juquinha, porque ele e a família dele não tinham nada para comer num domingo.

Ti dei umas palmadas, mas senti orgulho de saber que você tinha um bom coração, quando descobri que você tinha dado a sua comida predileta para uma família de necessitados. A parte mais engraçada da história é que não foi você que me disse.
Apanhou calado, como um verdadeiro hominho, só descobri o paradeiro da torta, porque o pai do Juquinha, ou Jorginho, veio agradecer o presente que havia mandado.

Um sorriso de criança surgia no meu rosto a cada história que o ancião contava. O orgulho da cria era claro no seu olhar, o momentos que se passaram há muito tempo pareciam estar ali, escondidos nos cantos de sua mente. Mesmo que tivessem detalhes imprecisos, o sentimentos que o moviam eram de uma certeza e precisão que fariam inveja a qualquer relógio.

Nem percebi a senhora de cachos dourados se aproximar e colocar a mão no meu ombro avisando que meu tempo havia se esgotado.

Levei-a para um canto, longe o suficiente para que meu novo avô – ou pai – não escutasse, e implorei por mais tempo. No entanto, ela fez um olhar severo e manteve sua decisão inflexível.

Durante o período em que negociei com Helena, o velho coronel caíra no sono e exitei em acordá-lo para me despedir e enquanto saia pela velha porta empenada pude escutar o senhor Rodrigues conversar com a senhora Helena. Com uma voz inquisitiva ele perguntava:

- Quem era aquele moço que tava conversando com você? Ele me lembra alguém... Ele queria conversar alguma coisa comigo?

- Ele era o seu neto, coronel. Vocês estavam conversando lembra?

- Meu neto morreu há muito tempo... Tem certeza que você disse neto?

Fechei a porta.

Não sei se conseguirei abri-la novamente.

Voltei para minha velha vida. Não podia mais atormentar o velho coronel. Algo voltou a despertar aquela náusea, mas não era mais aquela dúvida que me acompanhou por tanto tempo, agora pensava se o tempo condenaria a todos, ou se conseguiríamos...

6 comentários:

Anônimo disse...

Surpresa boa esse texto. História de um idoso e um jovem que diz mais sobre a infância do que muitos textos que relatam as vivências dos pequenos. Ótimo recurso de traquinagem e aquele coronel Rodrigues, vivendo a inocência da segunda infância da vida. Enquanto formos curiosos, desbravadores, seremos coronéis, betinhos, enfim, crianças.

Icaro Pupo disse...

Texto soando como uma bufada de ar novo no mundo literário virtual! Excelente construção da narrativa e impressionante conhecimento sobre como funciona a vida de um asilo. EXCELENTE

Amanda Juraski disse...

Isso aperta tanto o coração de alguém que ama os seus velhinhos...mas ficou muito bom! Gosto de história com conversas entre gerações! :)

André Wolv disse...

Deus do céu! O que houve contigo nesses últimos dias, meu amigo? Fantástico, sensacional... tetrassílabo!! Eu tenho uma coisa em mente. Quero fazer gravações das minhas tias e avó, em vídeo, com elas contando causos sobre o meu pai, sobre elas. Estive pensando nisso esses dias e tu texto me deu certa ânsia de fazer isso logo!

Gabriel Teixeira disse...

Belezura de texto! Não escrevo a tanto... chega a causar uma "náusea".

André M. Oliveira disse...

Muito bom, agora você conseguiu me surpreender. Acho que é o primeiro texto nesses moldes que é produzido no blog, e muito bem produzido, diga-se de passagem.
Você conseguiu apresentar uma fluidez de raciocínio ímpar. Meu parabéns.
A propósito, sei que estou em débito com o blog, vou tentar trabalhar isso em breve.