sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Beijo de Boa Noite



Sabão em barra, sabão em pó, água sanitária. Merda.

- Como farei para tirar essa mancha de sangue da camisa? Aquela desgraçada seria útil para lavar a minha roupa agora.

Paulo estava olhando a prateleira de produtos de limpeza da área de serviço da pequena casa onde morava, já haviam se passado alguns minutos mas ainda não tinha ideia de como tirar a sujeira que conseguiu passar pelo surrado avental de açougueiro.

O pouco lucro que dava o açougue ia todo para pagar as contas da casa. Água, luz, telefone, eram todas pagas com um já tradicional atraso. Os pequenos sitiantes da região ofereciam carnes de procedência duvidosa que eram prontamente aceitas sob condições de pagamento igualmente duvidosas.

Pelo menos sua família é uma alegria que aliviava o seu duro trabalho. Pelo menos era. A Rita, Ritinha como era chamada por Paulo e pelos mais chegados, deu ao seu esposo sua maior e última alegria em 63.

O nascimento do Júnior foi comemorado com um churrasco que durou um final de semana inteiro. Era o tempo das vacas gordas. Paulo havia acabado de abrir o açougue com o dinheiro da venda de uns terrenos que tinha em Minas e nem em seu pior pesadelo pensaria que 7 anos depois estaria quase falido tentando limpar uma mancha de sangue no tanque de sua casa.

A campainha toca fazendo um barulho estridente. A camisa é atirada em um balde enquanto ele enxuga as mãos em um pano de chão.

- Maldita, minha mão vai ficar cheirando alvejante.

Ele caminha até a porta, mas antes de abrir tenta ajeitar a cabeleira desarrumada e solta um sonoro “Caralho!” ao perceber que agora o seu cabelo também ficará cheirando a alvejante.

Do outro lado da porta estava Vera, a vizinha que misteriosamente sempre tinha uma correspondência ou pedaço de torta, bolo ou qualquer coisa do gênero para entregar pessoalmente para ele, acompanhada do Júnior.

- Seu Paulo, o Juninho ficou sozinho na frente da sua casa durante horas, por isso dei guarida pro menino enquanto o senhor não chegava.

Ele tinha esquecido completamente do menino. Havia estranhado o silêncio quando chegou, mas achava que o moleque já estava dormindo. Olhou o relógio e se assustou ao notar que já eram quase duas horas da manhã.

- Ô Dona Vera, muito obrigado. Fiquei até tarde no açougue hoje. Chegou carne nova sabe? É um trabalho danado cortar e moer aquela carne toda.

- Posso imaginar - Enquanto ela falava, o garoto ia se esgueirando para o quarto com um cambaleante andar sonolento.

- Eu não quero ser mexeriqueira, mas o senhor não acha que a Dona Rita devia ficar mais de olho no Juninho não? Ele ficou todo esse tempo na friagem aqui fora, se eu não tivesse chamado ele pra entrar, ele teria pego um resfriado.

- Acho difícil ela prestar mais atenção nele agora.

- É... Se você está dizendo. Se ela passasse menos tempo com aquele seu ajudante lá do açougue, com certeza ia poder prestar mais atenção no menino.

- Não se preocupe com isso.

- Então tá. Boa noite Seu Paulo, qualquer coisa só chamar.

- Pode ter certeza Dona Vera. Ah! Não deixe de passar no açougue amanhã vai ter uma promoção boa lá. A carne não é de primeira, mas vai estar quase de graça.

Após dizer isso fechou a porta. Queria apenas ir dormir e esquecer aquele dia infernal.

No caminho para o seu quarto teve que passar na frente do quarto do seu filho.

O pequeno estava deitado na cama, fazendo um esforço tremendo para se manter acordado. Com um voz rouca de sono chamou pelo pai e disse:

- A mamãe não vai vir me dar o beijo de boa noite?

- Hoje não meu filho. Hoje não.

5 comentários:

Amanda Juraski disse...

Cada pessoa tem uma história que vale a pena ser ouvida e ser contada. Algumas são épicas, e extremamente conhecidas, repassadas por gerações. Algumas estão alí, no canto, igualmente importantes, só esperando que alguém as veja e as reconheça, e é excelente quando, como neste texto, isso acontece (:

Anônimo disse...

E dessa vez... suspense! Nosso "autor anônimo preferido" está em um intenso momento criativo. Duas histórias surpreendentes em uma mesma semana o que mais se pode dizer? Um conto onde não se pode ter certezas, pois não há evidências declaradas de quem a mancha de sangue seria. Ao mesmo tempo nos apresenta com grande evidência. Lembrei-me de Bentinho quando no auge do seu ciúme praticamente enlouquece. E também dos contos de Lygia Fagundes Telles em "Venha Ver o Pôr do Sol e outros contos". E ainda terminar com o apelo infantil por um beijo de boa noite. Simples e genial. Continue nos presenteando com contos. Pois em meio ao caos da vida urbana é sempre bom ter literatura.

André Wolv disse...

Acho que o comentário da Mariana deixou bem claro o que eu queria dizer. Foi uma bela semana para o Sr. mesmo. Parabéns!!

André M. Oliveira disse...

Muito bom.

Sandy Evelyn disse...

Muitoo bom!!! Concordo com a Mari rsrs me fez lembrar os fins em suspenso da Lygia Fagundes Telles!! Mil possibilidades rsrs acho que ele a matou por ciumes rrsrs! Parabens!!!!