domingo, 4 de setembro de 2011

Mas, quem quer?



São três da tarde, o dia está frio e nublado. Na área de lazer da creche os pequenos Felipe e Mariana brincam com giz de cera.
Felipe desenha seu cachorrinho novo, ele o ganhou de presente no último fim de semana, ainda não escolheu um nome para ele. Mariana desenha a si própria no meio de flores.
Sem desviar os olhos de seus desenhos ambos conversam.
- Ô Mariana, o que você tanto falava com a Tia Júlia hoje? Você fez algo errado? Ela estava te dando uma bronca?
- Não... É que meu pai me falou que queriam derrubar a creche, aí perguntei pra ela se era verdade.
- Não vão derrubar nada sua boba.
- Ah é? pois ela disse que talvez derrubem sim!
Retirando os olhos de seu desenho pela primeira vez Felipe indaga: - Mas quem quer?
- Ah, assim, a tia disse que não é bem querer, mas que os moços precisam derrubar a creche pra passar com a rua...
- Que rua?
- A rua que vai tirar o engarrafamento da cidade, porque quase todo dia quando agente sai daqui tem engarrafamento.
Felipe parou de desenhar por um instante e olhou em volta, para o gramado, para o caminho por onde os estudantes da faculdade passavam todos os dias, para as grandes construções que eclipsavam a pequena creche naquele ambiente universitário e pensou, mas que rua seria essa? E pra onde será que ela levaria tantos carros assim, a ponto de desengarrafar a cidade? E, principalmente, por que ela teria de passar por cima de sua creche?
- Mas você não disse quem que quer fazer isso Mariana.
Mariana suspirou e olhou para Felipe com um arzinho de reprovação balançando a cabeça. Sempre que seu irmão insistia em uma mesma pergunta sua mãe suspirava e olhava para ele dessa forma, ela achava engraçado.
- Felipe, já disse que a tia Lúcia me falou que não é por querer, é porque eles precisam passar com a rua por aqui.
- Eles quem? Insistiu o garoto já levemente irritado, não entendia essa mania que algumas meninas pegavam dos adultos de ficar circulando uma pergunta ao invés de respondê-la simplesmente. E Mariana adorava imitar os adultos.
- Meu pai disse que é o reitor. Respondeu por fim Mariana.
- O que é um reitor?
- Não sei, olha, está ficando bom meu desenho?
Felipe meneou a cabeça em sinal positivo e se levantou caminhando até a jovem monitora que neste momento estava redigindo alguns relatórios enquanto as crianças desenhavam. Chegou próximo a ela e indagou sobre o que era um reitor e porque ele queria fazer uma rua por cima da creche.
Lúcia, pega de surpresa, tentou explicar da forma mais simples possível.
- Olha Felipe, o projeto dessa rua foi feito pela prefeitura e pela reitoria, pelo que sabemos, e eles querem melhorar o trânsito da cidade com isso.
- Mas o que é um reitor?
- Reitor é uma pessoa que faz parte da universidade e na qual as pessoas votaram para que ele tomasse conta dela.
- E o que é votar?
- Funciona assim, alguém se candidata, ou seja, pergunta se você aceita que ele tome conta da universidade, se você aceitar você vai e dá seu voto. Que é como se você dissesse "Eu aceito que você tome conta da Universidade sendo o reitor". Com o prefeito também é assim, só que para cidade.
- Então o reitor toma conta da universidade pra gente?
- Sim.
- E o prefeito da cidade?
- Sim. Eles fazem coisas que ajudem os estudantes da universidade e os moradores da cidade.
- E essa rua vai ajudar quem?
A monitora ficou pensativa, Felipe não gostava desse olhar pensativo de gente grande. Ele sempre era seguido de uma mudança de assunto, ou de um embaraço que impedia qualquer explicação.
- Bem... Então... Felipe, a tia não sabe bem do que se trata o projeto, nada foi divulgado muito claramente, nem sabemos ao certo se a rua vai mesmo passar por cima da creche. Então vou ficar devendo uma explicação detalhada pra você, certo? Mas não precisa se preocupar, se precisarem passar por aqui com a rua vão remover agente pra outro lugar, e vai ficar tudo do mesmo jeito.
Felipe pensou um pouco, olhou para o céu salpicado de nuvens no fim da tarde.
- Tá bem. Disse o garoto resignado. - Agente podia chamar esse tal reitor pra vir aqui um dia. Pra brincar com agente, eu posso emprestar um brinquedo pra ele, ele pode ouvir você contando histórias, participar do lanche, aí ele vai ver que aqui é bom, e não vai mais derrubar.
- Ai, ai, Felipe, acho que o reitor não tem tempo de ficar brincando em uma creche. Disse Lúcia rindo. - Ele é um homem ocupado, que trabalha muito.
- E para que ele trabalha tanto?
- Pelo mesmo motivo que tantos adultos trabalham muito, para poder ganhar dinheiro.
- Para que ele quer ganhar muito dinheiro se ele não tem tempo nem para brincar? Disse Felipe mais para si próprio do que para a monitora. Após essa reflexão ele voltou para seu desenho. Decidiu que chamaria seu cachorrinho de Ben, por causa do Ben 10.
- Como vai ficar do mesmo jeito? Pensava Felipe. - Se agente sair daqui não vai ter mais essa pedra onde a tia senta pra contar histórias, não vai ter o ninho de quero-quero nos fundos da creche e nem o pessoal da faculdade que de vez em quando vem aqui.
- Então Felipe, descobriu o que é um reitor? Perguntou Mariana desenhando os últimos detalhes de suas flores.
- Sim, é alguém que pergunta se pode ajudar. Aí, depois que deixamos, passa a fazer o que quer, e nem diz pra gente quem está ajudando.
Depois começou outro desenho, começou a desenhar aquela pequena casa cercada de prédios suntuosos, para que tivesse algo para lembrar, quando as gargalhadas fossem substituídas pelo ronco dos motores, as várias cores da fachada pelo cinza do asfalto e os sonhos livres das crianças pelo utilitarismo do progresso.



2 comentários:

Taíla disse...

UAU só pra variar né?! Maravilhoso!

Marcionília disse...

Garoto, vc é foda (com todo o bom sentido da palavra)!!! Adorei, mais vez, o que não é novidade!!! Editarei como nota no meu face!!! beijOs