quarta-feira, 12 de maio de 2010

Perceber sem ver




Madrugada. Dois homens caminham pela rua. Um alto, traja casaco marrom pesado, está visivelmente incomodado com o frio excessivo que acomete a região. O outro um pouco mais baixo, traja uma calça jeans e uma camisa branca estampada, a brisa gélida não parece o incomodar.


Marcos se encolhe dentro do casaco. Olha para Gabriel, tão a vontade naquele clima... Olha para o que julga ser um leve sorriso.


- Rindo de que?


- De você, é claro!


- Não sei onde está a graça...


- Em tudo! Nesse frio sobrenatural que você está sentindo...


- Está frio droga!


... Nessa sua cara de Romeu frustrado!


Marcos sente vontade de explodir em uma torrente de despautérios. Mas não adiantaria nada. Ele também achava que tinha feito papel de bobo. E Gabriel tinha assistido a tudo... Agora ria contidamente.


Eles caminham pela calçada. Ao longe figuras humanas escondem seus pecados nas sombras. enquanto estampam seus medos nos olhos. Gabriel olha divertidamente seu amigo.


- Tu gosta mesmo dela?


- Claro Gabriel! Não viu o que fiz???


- Só porque um apaixonado faz idiotices não quer dizer que toda idiotice é fruto de uma paixão. Melhor confirmar, não acha?


- Idiota...


Gabriel gargalha alto.


- Marcos... Você está cego cara!


Marcos para e olha o céu. Praticamente não há estrelas, apenas escuridão. Ele fecha os olhos e pensa por alguns instantes. Gabriel se diverte com a cena.


- Você está certo.


- Hã?


- Você está certo, acho que estou como um cego.


- Viu só? Não falei que essa garota só te faz mal...


- Não, você não entendeu. Eu estou enxergando como um cego!


- ?


Marcos encosta em um poste, fecha os olhos e lembra, e de acordo com suas lembranças narra um acontecimento.


- Um dia estava na praça esperando-a pra ir ao cinema, um senhor cego se aproximou e sentou-se no banco ao meu lado. Perguntei se ele queria ajuda, ou se precisava de algo. Ele disse que não. Que conhecia bem os arredores. Começou a falar das pessoas que moravam por ali. Boas pessoas mas com vários problemas, o bairro estava se tornando perigoso... Falou de política, da falta de ética no senado e de como as pessoas deixavam a oportunidade das eleições passarem em branco. Conversamos alguns minutos, até que ele resolveu partir. Assim que ele se levantou um garotinho passou entre nós e gritou para a mãe. ' Veja mamãe, que bonita essa borboleta azul!'. O velho cego ficou olhando para a direção da voz da criança que contemplava extasiada seu objeto de fascínio. Ele me perguntou se eu achava bonita a borboleta. Fiquei embaraçado. Respondi que sim, que era muito bela e que era uma pena ele não poder -la, pois ela tinha uma tonalidade de azul muito bonita. Não sabia se tinham sido boas palavras... Ele sorriu e me disse: ' Não posso ver o azul que você e todos os outros vêem, em compensação ninguém mais pode ver a leve tonalidade de amarelo que agora só eu percebo. Quem é merecedor de pena meu garoto, você que enxerga apenas o que os olhos lhe mostram ou eu que percebo o mundo de várias formas sem ver?'.


Gabriel o olhava estático, compenetrado na ação narrativa.


- Agora, Gabriel, me percebo como aquele senhor cego. Pois contemplo além daquilo que se limita ao visível. Por isso me ridiculariza. Como dizia Nietsche: "Quanto mais alto você voar, menor parecerá aos olhos daqueles que não saem do chão!"


- Nossa Marcos. Acho que o amor está operando milagres em você. Realmente belas suas palavras...


- São sim!


-Mas você ainda é um idiota. Gabriel diz isso e dá um tapinha nas costas de Marcos antes de seguir a caminhada, enquanto este lhe olha perplexo.


Um odor fétido vem com a brisa do mar enquanto ambos seguem pela calçada. Um de cabeça baixa, encolhido pelo frio. O outro de fronte erguida sorrindo levemente. Através da maresia fétida seguem, quase perdidos numa noite imunda.

2 comentários:

Stéfs disse...

pra variar um excelente texto!

Que dom ein pika?!
nossa,cada dia me surpreendo mais!!

Gostei muito de toda a descrição, e principalmente da parte em que só o cego consegue ver aquilo que ninguém mais consegue!

parabéns!

Taíla disse...

Oficina perceber sem ver puraaaa!!! Mas ficou muuuito bom o texto, a narrativa e tals. Bonito mesmo! Só você né "pika"? rsrsrsrsrsrsrs