domingo, 24 de abril de 2011

Canções e Silêncio IV - O Fim da Jornada

Na divisão do mundo os três Deuses mais poderosos ficaram encarregados de cuidar de domínios diferentes.

Zeus ficou com os céus e a terra.

Posseidon ficou com os mares e oceanos.

Hades ficou com o submundo.

E agora aqui estou eu, o mais longe de casa que qualquer viajante pode chegar, para reencontrar e levar de volta a superfície o amor da minha vida.

Agora finalmente entendo porque Hades deu ao seu reino o seu próprio nome.

Hades apresenta-se como um homem velho, vestindo uma bela armadura, no entanto sua pele e o metal de sua armadura parecem ser feitos com o mesmo material que todo o resto de seu reino.

Trevas. Dor. Desespero.

O simples vislumbrar de sua face faria qualquer homem correr em busca de abrigo, mas eu não sou um homem qualquer.

Tenho uma missão e mesmo que todos os tormentos do Hades caiam sobre mim, eu irei cumpri-la.

“Tú, Orpheu, maior entre os poetas, vem ao meu reino, sem ser convidado e ainda causa mais problemas do que sua grandiosa imaginação pode conceber. Por acaso não sabe que meus domínios são conhecidos por não tolerar a presença de visitas inconvenientes?”

Sua voz era poderosa e sombria, o som ecoou por todo o salão.

“Se causei problemas peço perdão Senhor do Reino dos Mortos, mas venho aqui na esperança de desfazer um engano terrível. Minha querida Eurídice foi trazida aqui injustamente! Nós ainda tínhamos muito tempo para ficarmos juntos e este tempo foi retirado antes do que deveria, por isso venho reclamá-la de volta ao mundo dos vivos.”

O semblante do Deus das Trevas fica paralisado por um instante e depois se transforma em uma maligna gargalhada.

“Sempre soube que foste um bom poeta, mas não sabia que era também versado na comédia!
Pensa que pode entrar nos meus domínios e levar qualquer pessoa assim? Acredito que não tem ciência do tamanho do meu poder.”

“Conheço bem tua fama, Mestre do além-vida, mas estou disposto a qualquer coisa para levar minha doce amada. Farei qualquer coisa, sob qualquer condição que desejar.”

Um brilho maligno surge nos olhos de Hades.

“Se é assim, hoje é seu dia de sorte. Permitirei que leve Eurídice para a superfície com uma simples condição.”

“E qual seria, ó poderoso Hades?”

“Só poderá olhá-la quando a luz do sol tocar a pele de sua amada. Ela te seguirá e
você vai ter que confiar em minha palavra para tê-la de volta.”

“O que acontecerá se eu olhar para trás?”

“Nenhuma força na criação poderá devolvê-la a você. Nem mesmo se todos os meus irmãos se unissem teriam poder suficiente para entregá-la a você, portanto muito cuidado em seu caminho de volta...”

Apesar da aparente misericórdia do Senhor das Trevas, suas expressão deixava transparecer uma suave malícia e se tratando de Hades qualquer mínima desconfiança é motivo para o máximo cuidado.

“Agradeço Vossa misericórdia, Grande Hades. Partirei imediatamente.”

“Ao sair de meu palácio ela já o estará seguindo, e pode ficar tranqüilo, nenhum dos seres que habitam o Hades iram lhe fazer mal durante sua viagem.”

Saio com passos firmes do salão onde tive a audiência, pois agora finalmente estou próximo de reencontrar a razão da minha vida.

Assim que Orpheu sai do salão Perséfone vai ao encontro de seu esposo e fala:

“Não é de seu feitio fazer bondades deste tipo, principalmente ao se tratar de permitir que uma alma saia do seu território, meu esposo.”

“Não pense que estou amolecendo. O desafio que Orpheu se propôs é maior do que aparenta.”

“Mandará algum dos teus servos dificultar o caminho de saída dele?”

“Não é de nenhum dos habitantes do Hades que Orpheu deve temer...”

...

Em meu passo apressado para sair do Reino dos Mortos passo rapidamente pela Cidade dos Mortos e seu terrível guardião e chego no deserto de trevas que leva até o rio Estige, até o momento Hades parece cumprir com sua palavra e nenhum ser interferiu em minha jornada.

Mas de repente uma voz começou a falar comigo... Não era a da minha amada, era uma voz masculina e terrivelmente familiar.

“Cruzaste a mais longa aventura que qualquer ser pode cruzar. Parabéns! Será para sempre lembrado.”

“Quem é? Essa voz me soa familiar, mas não reconheço!”

Exclamei para que o misterioso locutor se apresentasse, no entanto parece que ele não me deu ouvidos.

“Será lembrado como o grande herói que salvou sua amada, ou o tolo que cai na mais épica piada de toda a Grécia? Mas ainda pode piorar! Imagine se vossa eminentíssima pessoa consegue sair triunfante desta história, com sua amada nos braços e ela simplesmente te abandonar daqui a alguns poucos dias”

Quem seria essa voz? Aperto ainda mais o passo para deixá-la para trás, mas mesmo assim ela parecia sussurrar ao meu ouvido.

“Você pode ouvir os passos dela? Nem mesmo seus próprios passos consegue ouvir, o que te garante que ela está te acompanhando?”

Terríveis palavras carregadas de veneno! Por mais que não quisesse prestar atenção não podia negar sua veracidade.

Meus passos não possuíam som, o que me garantiria que Eurídice ainda estaria atrás de mim?

Chego ao encontro da barca das almas e Caronte não troca uma palavra comigo durante toda viagem, a agonia de não saber o que realmente se passa se torna a pior de todas as dificuldades que encontrei em minha jornada.

Após chegar a outra margem do Rio Estige sei que faltam poucos metros para finalmente retornar a superfície e dar fim e esta terrível viagem, no entanto subitamente a voz retorna a proferir suas peçonhentas palavras.

“É isso, estamos aqui. Esse é o fim da Jornada do Mestre dos Poetas, conseguiu sua amada e poderá ser feliz para sempre. O que fará agora? Será que conseguirá cumprir com essa abominável missão de ser feliz para sempre?”

“Conseguirei sim! Vá embora demônio!”

Enquanto praguejava contra o ser invisível tropeço e uma série de pedras rolam atrás de mim, em um ato reflexo olho para trás para ver se minha amada estava bem.

Ela está estonteantemente linda, sua beleza faz parar o tempo ao nosso redor e um sorriso compartilhado brota em nossas bocas, corro para tocá-la, mas o locutor misterioso retorna a falar.

“Ela é realmente divina, deve ser mais bela ainda a luz do sol...”

“Não!!!!!”

Grito desesperado. A luz ainda não havia tocado sua pele de seda e olhá-la me fez quebrar o acordo com o Senhor do Submundo!

Criaturas feitas de trevas agarram-na e a levam de volta para a prisão do mundo além-vida e a visão dela sendo arrastada para lá gritando meu nome fica marcada para sempre em minha memória.

Saio da caverna aos prantos, tudo o que fiz foi em vão, nada parece mais fazer sentido... Mas espere... O que me fez criar tantas dúvidas e questionar sobre meu amor e minha missão? Hades havia prometido que nenhum dos teus servos iria atrapalhar meu regresso ao reino de cima. Reflito por instantes tentando lembrar da onde reconhecia aquela voz e chego a mais aterradora das conclusões.

Era a minha própria voz.

Eu minei a minha chance de felicidade. Eu destruí o meu próprio futuro. Penso que a ausência de sentido de minha vida pode ser solucionada se me suicidar. A covardia se torna tentadora.

No entanto, escolho outro caminho, vou cantar a minha jornada para todos os jovens apaixonados que buscarem conselhos, vos mostrareis que o pior inimigo que podem enfrentar são eles mesmo e que no final nossas vidas se resumem a canções e silêncio.

FIM

Notas do Autor:

Espero que tenham gostado dessa pequena história e peço perdão pelo espaçamento que existiu entre cada capitulo. O tempo foi necessário para ajudar a amadurecer os textos e não tornar ainda mais dolorosa a sua confecção.

Não lembro se já havia dito isso antes, mas gostaria de lembrá-los, caros leitores, que os mitos são formas de contar histórias que nunca aconteceram, mas que podem acontecer em todos os lugares, portanto não existe um Orpheu, uma Eurídice e um Hades, nós somos todos os personagens ao mesmo tempo.

Sem mais. Obrigado.

Um comentário:

Wolv disse...

Ótimo final, para uma ótima história. Dá gosto ver como vcs escrevem.