A arena inteira está em silêncio aguardando o próximo movimento, que assim como todos, pode ser o último. O silêncio é quebrado quando após a besta passar furiosa, toda a torcida rompe em um grandioso "Olé!".
O couro do torso do touro toca suavemente a roupa brilhante de seu nêmeses, que apesar da falha imperceptível para a plateia, sabe que cometeu um erro e mesmo decepcionado continua com seu olhar pétreo para o adversário, fazendo pequenos movimentos nessa dança cruel.
O toureiro está na arena e não está, os antigos chamam isso de espirito da arena. Quem comanda seus passos não é a sua vontade própria, mas sim a vontade de todos os toureiros que vieram antes dele e antes dos toureiros, do próprio Deus que ensinou essa arte aos homens.
A plateia veio pelo banho de sangue, mas ele está ali em respeito as antigas tradições e até mesmo em respeito ao próprio touro. Cada trote desembestado da criatura é correspondido com um movimento técnico. A fúria e a razão dançando enquanto são aplaudidas por uma legião de ignorantes.
Tudo é belo, tudo é cruel. O toureiro cansa o touro fazendo o mínimo esforço. A besta tenta desesperadamente matar o toureiro, mas mira no lugar errado. Assim ambos continuam, assim ambos mantem este ritual que só termina com a morte de um dos dançarinos.
Mas neste dia foi diferente, o dançarino não se manteve no espírito da arena, deixou seu coração ser tomado pela mesma fúria que havia no coração do touro. Lembrou-se do dia anterior, quando sua amada resolveu partir e com a fúria, veio o medo e com o medo, a cegueira.
Uma piscada mais longa. Somente estes poucos segundos de trevas absolutas, foram necessários para dar fim a dança. O longo chifre pontiagudo da criatura perfurou seu peito, no exato local onde estava seu já dolorido coração e agora toureiro e touro são apenas um ser horrendo e bizarro circulando pela arena.
A rosa vai o chão e a torcida horrorizada com desfecho do macabro espetáculo grita desesperadamente, retirando crianças agora traumatizadas e se pisoteando-se na busca por alguma saída daquele teatro de horrores. Todos compartilham agora o medo, a fúria, o desespero do touro. O ritual tem o seu pior desfecho.
A consciência do toureiro voa por todos os lugares que já esteve, rememorando alegrias e tristezas, momentos felizes e traumas secretos. Tudo enquanto trota em agonia junto a criatura a qual deveria ter sido o assassino.
Sabendo que tudo está perdido e que suas esperanças de glória e amor terminaram naquela sangrenta arena, utiliza suas últimas forças para, com sua espada, causar um golpe fatal na besta assassina. O ritual foi profanado. Ele sabe que deveria dar ao touro o direito de viver, assim como o teria caso tivesse sido o vencedor da disputa.
Sua mão encontra o couro ainda quente da besta e com um toque quase carinhoso, pede desculpa.
Agora ambos podem finalmente descansar.
Um comentário:
Fino demais! Sempre uma delícia ler teus textos aqui, meu querido.
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