Faz tempo, não me lembro direito quando, mas o que lembro é que foi em uma manhã. Meu sono foi perturbado por um delicado chacoalhar que foi aumentando de intensidade até me arrancar do reino de Morpheu, ainda atordoado, com a vista recuperando o foco e se adaptando aos poucos raios da luz matinal que entravam pela janela vi minha morte ao lado da cama.
Nunca a tinha visto antes, mas ao fitar seu semblante soube instantaneamente que era a minha morte, só tive tempo de uma breve oração antes dela começar a falar.
- Pode parar com isso, não vim para te levar agora, vim apenas te falar que hoje eu posso te levar, então é bom começar a arrumar as coisas.
Tentei argumentar, mas antes que as palavras saíssem ela já não estava mais no quarto. Corri feito um louco, tomei o melhor banho da minha vida, pois tinha a certeza que era o último, tomei o café com a mesma certeza, falei com todos que quis, escondendo a mesma certeza, pois achei melhor evitar prantos desnecessários antes da hora.
O dia voou e nem sinal da minha morte, fui dormir com a certeza que seria durante o sono que ira passar dessa pra melhor.
De repente sinto o agora conhecido chacoalhar e ao abrir os olhos vejo novamente minha morte.
- Estou pronto - digo com a mais digna certeza - pode me levar para onde for.
- Levar?
Acho que escuto uma risada, se é que a Morte pode rir.
- Não vou te levar, só vim dizer que posso te levar hoje.
Fico atônito.
- Não foi isso que você me disse ontem?
- Sim e direi isso todos os dias pelo resto da sua vida para que nunca se esqueça que estou a um passo de distância, todas as suas ações devem ser guiadas com a convicção que posso te levar a qualquer momento.
- Devo viver como se não houvesse amanhã?
- Não vim te dizer como deve viver. Vim apenas dizer que estou sempre por perto.
E assim ela desapareceu novamente.
Nos primeiros dias corri para fazer tudo que me desse vontade, sempre sendo acordado nas manhãs pelo meu insólito despertador, mas os dias foram passando e meu único encontro com a ceifadora era no despertar.
Isso foi me dando confiança para tentar coisas de mais longo prazo, buscar a ocupação que queria, o relacionamento que desejava, fazer os exercícios que achava interessante, tudo isso sabendo que podia ser a minha última ação, pensava "se morrer agora, morrerei tendo feito o que quis ".
Teve vezes que tentei barganhar, por motivos mais e menos nobres, as vezes quis negociar alguns minutinhos mais na cama e em outros implorei que ela me desse a garantia que não me levaria pelo menos enquanto os meu filhos fossem pequenos, mas independente da nobreza dos meus pedidos, ela apenas falava que poderia me levar a qualquer momento e desaparecia.
Os anos se passaram e a quantidade de sacolejos necessários para me despertar iam aumentando. Foi então que um dia a minha Morte ao entrar no quarto ponderou se deveria me conceder os tão pleiteados cinco minutos, mas ao ver meu sorriso enquanto dormia, sorriu também e me deu muito mais do que cinco minutos, me deu a eternidade.
Um comentário:
Muito bom, Tarso!
Me lembrou um dos arcos de Sandman sobre a Morte, no qual um homem que havia sobrevivido desde a idade da pedra morre em um acidente de construção civil e se vangloria com a morte. "Uma pena partir, principalmente dessa maneira, mas considero que fui muito bem, vivi mais do que a grande maioria, quanto tempo? Dez mil anos, quinze mil?" ao que a morte responde. "Você viveu exatamente o mesmo que todos os outros: O tempo de uma vida. Nem mais, nem menos."
Interessante pensar que a morte diz da vida, do tempo de uma vida.
Triste pensar que se morre aos poucos quando cotidianamente nos esquecemos de que viver é seguir em frente com a morte no horizonte, e que isso parece ser tão frequente no contemporâneo.
Ótima reflexão. =)
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