É impressionante a quantidade de lama que pode ficar presa na roupa quando se está andado a cavalo em um lamaçal durante uma das piores tempestades que vi nesses últimos anos.
Resolvi adiantar minha chegada, já que os batedores que enviei ainda não deram notícias. Confio plenamente na capacidade deles, já os vi lutando contra coisas que fariam pessoas normais terem pesadelos por anos e saírem de situações que até hoje me fazem pensar se realmente aconteceram ou não passavam de um delírio.
De qualquer forma, já se passaram dois dias desde a data combinada e dei ordens expressas sobre o quão importante era me manter informado e ser o mais discreto possível na chegada à Rafrin.
Essa cidade cresceu muito em pouco tempo, todos vieram para cá tentar a sorte já que as principais feiras do reino agora passam por aqui, mas não são só louros que essa cidade guarda, os crimes estão cada vez mais constantes e o prefeito da cidade havia nos sondado sobre problemas com uma guilda de ladrões que tem atacado as caravanas da região. Esperava que Andrew e Rogy me atualizassem sobre a situação, mas pelo visto eu mesmo terei que descobrir.
Já é tarde e nessa chuva somente estabelecimentos de reputação questionável estão com suas portas abertas. Putas com frio me vêem passar e nem se dão ao trabalho de me convidar para entrar em seus salões de ofício. Me abaixo um pouco para ver de cima do cavalo as janelas das tabernas abertas e mesmo a metros de distância sei que é na "Taberna do Calcanhar de Chumbo" que devo entrar.
A voz de Andrew era mais alta do que o barulho da chuva e antes de entrar espiei pela janela vendo que sua face estava mais rosada que o normal, algo me dizia que era por causa das cinco ânforas de vinho que estava espalhadas pela mesa.
Minha entrada mal é notada, estava com uma capa e capuz escuros que mal deixavam ver meu rosto e a camada de lama impossibilitava qualquer identificação.
Em uma olhada rápida vejo que a taberna não é muito grande, com pouco mais de cinco mesas e um pequeno palco onde pude ver um conjunto de músicos olhando feio para o meu amigo, pois ele era o centro das atenções naquele lugar. É comum os bardos estarem nessa posição, mas Andrew era especialista nisso. Ele arranhava tocar um pouco de violão e flauta, mas era ao contar histórias que ele mostrava seu verdadeiro dom. Ele falava e as pessoas ouviam, simples assim.
A família de halflings que pelo que inferi era dona do lugar se esforçava para dividir a atenção entre atender os pedidos e ouvir as histórias. A mais nova, que deduzi ser a filha do casal que estava atrás do balcão já havia largado a bandeja e estava sentada próximo do bardo ébrio.
E foi assim que prendi a demonia de cabelos vermelhos na privada de uma estalagem no caminho para a Fortaleza do Orc.
Gargalhadas eram ouvidas e olhares de descrença eram lançadas ao final da história e ele continuou:
- E agora, qual história querem ouvir?
A filha do taverneiro com os olhos brilhando, pediu:
- O senhor disse que era da Companhia do Tigre Branco, nos conte porque ela tem esse nome, se não for pedir demais...
- Essa não precisa ser um bardo metido a besta para saber - gritou um dos músicos até então ignorados no palco - é por causa dos cabelos brancos do líder deles.
Andrew sorriu com o canto da boca e percebeu que aquela era a sua deixa.
- Muito bem, meu desafinado amigo, você está certo. Mas a pergunta que os senhores devem se fazer é porque um homem que mal chegou aos trinta anos, já está com os cabelos tão brancos!? A resposta para essa pergunta é um dos segredos mais bem guardados da nossa Companhia, mas como vocês ou melhor, quase todos vocês, se mostraram um público tão digno, revelarei, mas espero que não contem para ninguém...
Eu já ouvi dezenas de versões dessa história que Andrew conta sempre que está bêbado, algumas são trágicas outras fantasiosas demais, mas sempre gosto de ouvi-las. Antes de me revelar, deixarei o rapaz contar essa última história.
- Vocês já ouviram falar no Tigre Branco do Oriente?
Um arrepio subiu pela minha coluna, ele não deveria ir tão longe em suas brincadeiras, receoso com o que poderia ser revelado, continuei a ouvir. Ele empostou a voz e deu seguimento.
Muito longe, lá depois de onde o sol da manhã nasce, existe uma terra de mistérios e magia tão antiga quanto o próprio tempo.
Lá homens tentam descobrir a verdade e muitos não voltam, seja por sucumbirem as vicissitudes do caminho ou por acabarem por descobrir que os monstros que habitam dentro deles são muito piores do que as bestas que espreitam na noite.
Estávamos em um grupo de mais de 20 homens, cada um mestre em sua especialidade, passamos dias perdidos em desertos tão secos que secavam nossas lágrimas de fome antes mesmo delas saírem dos olhos, cruzamos montanhas que uivavam dia e noite e no vento escutamos a morte nos atraindo para precipícios sem fundo. Tudo isso para chegar nas matas de Malaysa, onde um dos piores demônios do mundo habita, o temível Tigre Branco do Oriente.
- Mé... até parece, não há ninguém que foi tão longe! E esse lugar não passa de uma lenda! Esse tal de tigre não passa da invenção de um bêbum.
- Então me explique como alguém pode ter uma ferida como essa - disse Andrew enquanto levantava a manga da camisa e mostrava um ferida que tinha aproximadamente 15 centímetros e sua cicatriz era de um púrpura profundo - nenhuma criatura desses lados do mundo deixa uma marca parecida.
A visão do ferimento espantou toda taverna e fez calar o nêmesis desafinado do bardo.
Eu estava ficando cada vez mais preocupado com os rumos que aquilo estava tomando. Existem histórias que não devem ser contadas.
Algumas lições devem ser aprendidas ao se enfrentar criaturas mágicas de outros continentes, e a principal delas é: Elas nunca estão sozinhas.
Nosso grupo já estava reduzido a quatro pobres coitados, os outros ficaram pelo caminho, um deles foi devorado por uma trepadeira cantante de Yr, o que é uma visão no mínimo curiosa, mas isso é uma história para outro dia.
Chegando no que seria o esconderijo da tal criatura notamos que haviam outras vozes dentro da caverna, pois seu som ecoava e reverberava por entre os labirínticos salões do local. Rossat que já era nosso líder na época, demorou poucos segundos para compreender que aquilo que ouvíamos era um feitiço de subjugação e pelo nível daquele ritual uma força ainda mais medonha estava operando naquele lugar.
Passamos por uma série de armadilhas que com a ajuda fundamental de Nadiram, nosso habilidoso e - por vezes flertador com a morte - ladino, foram abrindo caminho até o nosso derradeiro encontro.
Em um salão com mais de cinquenta metros de altura, vimos a colossal fera em um círculo mágico se debatendo contra correntes de uma luz maléfica que tentavam subjugá-la. Ao seu redor, três mulheres vestidas de preto estavam em um transe hipnótico.
Rossat tomou a dianteira e bradou:
- Identifiquem-se seres das sombras! Vocês estão entre mim e minha conquista, saiam agora e nada de mal lhes será feito.
- Identifiquem-se seres das sombras! Vocês estão entre mim e minha conquista, saiam agora e nada de mal lhes será feito.
Uma maligna gargalhada foi ouvida, gelando nossos corações e fazendo Pietro correr como se não houvesse amanhã. Ele não estava de todo errado, se continuássemos ali, não haveria amanhã.
A voz não vinha de nenhuma das mulheres, mas das três ao mesmo tempo. Tudo ficava um pouco mais morto a cada palavra que ela pronunciava.
- Quem seremos essa noite, minhas irmãs? Acho que Camila é um bom nome. Somos Camila, estrangeiro. Quem é você?
- Podem nos chamar de Gabriel - disse Rossat com um sorriso ameaçador no rosto, desafiando as bruxas.
- Podem nos chamar de Gabriel - disse Rossat com um sorriso ameaçador no rosto, desafiando as bruxas.
Mesmo sem trocarem mais nenhuma palavra, podia sentir o ódio delas vindo em nossa direção. A temperatura havia caído uns dez graus e o silêncio que antecipa a tempestade foi rompido por um relâmpago que saiu das mãos da Camila do meio. Se tivesse olhos menos treinados não teria nem visto os gestos de preparação da magia e não haveria escapado.
Rossat tripudiou.
- Eu estou aqui! Na próxima tente ser um pouco mais precisa.
Ele abriu os braços como quem tenta abraçar a noite.
Os olhos das criaturas começaram a pegar fogo, bolas incendiárias foram arremessadas, mas a Barreira de Espelhos que Rossat conjurou nos defendeu sem maiores problemas. Sempre fico irritado e agradecido pelo fato dele não precisar gesticular nem falar nada para fazer os seus feitiços. Acho que ele aprendeu isso no tempo que passou em uma tribo no Deserto de Al-Birra.
Estou perdendo o foco, me desculpem.
Tomem nota disso que vou dizer, ao trabalhar em grupo, tenha a certeza que pode confiar em seus parceiros, depois de compreenderem isso, tudo fica mais fácil. E eu confiava em Rossat e Nadiram, sabia que pelo menos um deles tinha um plano. Era bom eles terem um plano. E colocarem em prática logo.
A distração que o nosso feiticeiro havia criado deu espaço para que Nadiram se esgueirasse e incapacitasse uma das Camilas.
Pensamos que a vitória estava nas nossas mãos, mas não contávamos que com menos uma das inimigas o Tigre se libertasse tão rápido e arremessasse longe o ladino, fazendo-o bater a cabeça em uma pedra e desmaiar.
A criatura devorou as outras duas feiticeiras malignas com uma gana aterradora e após isso voltou seus olhos brilhantes como estrelas explodindo em nossa direção e um mar de fúria tomou seu espírito.
Fazendo um rolamento lateral, tentei usar meu florete contra a vil besta, mas minha arma passou por sua etérea pele. Fiquei desesperado ao perceber que meu ataques seriam em vão e antes mesmo de bolar alguma artimanha, com uma patada também fui jogado para longe e ainda recebendo esse corte no braço da garra daquele demônio.
Rossat ficou entre mim e a criatura, ele era nossa última chance.
- Então finalmente nos encontramos - disse ele com uma tranquilidade perturbadora - identifique-se criatura, para que possa ter certeza de que é você mesmo quem eu tenho que derrotar.
- Eu sou o Tigre Branco do Oriente! O Espírito da Vingança! Quem ouve meu nome sabe que deve temer!
- HA-HA-HA
Um silêncio constrangedor emergiu após a risada de Rossat.
- Vim de muito longe para obter o seu poder. Seu último hospedeiro está morto à 700 anos e nessa noite um novo pode tomar o lugar. Serei eu.
Eu não havia ideia que esse era o plano dele desde o começo, mas como diversas vezes ele mesmo havia me dito, quase pude ouvir sua voz em minha cabeça repetindo "Apenas confie".
- Você sozinho tentará me aprisionar?
- Não. Eu não tentarei forçá-lo a nada, você entrará por vontade própria. Se tiver coragem, é claro.
Dessa vez foi o Tigre que riu.
- Mostre-me o que pode fazer, criança.
Rossat estava com as palmas das mãos paralelas a poucos centímetros do seu peito. Nesse espaço se materializou o que parecia ser um coração de energia - arisco a dizer que era um pedaço da alma dele - e o Tigre entrou como se passasse por um funil.
A voz da criatura estava em nossas mentes, podíamos ouvi-la rugindo e fomos transportados para uma realidade paralela, lá o ser diabólico parecia menos diabólico. Lá ele transmitia a sensação que vemos quando observamos uma força da natureza, uma tempestade, onde não existe bom ou mal, apenas se é. A mesma força que enche nossos rios cria enchentes que levam tudo embora.
- Eu sou a personificação da Vingança e somente um coração que sabe o que realmente significo pode me receber.
Teu núcleo clama pelo meu poder e dentro de ti posso me alimentar dos seus mais doces sentimentos.
Tudo que existir de infame dentro de ti transbordará.
Posso ver cada mentira, cada artifício, tudo.
Posso te fornecer meu poder, até que você se torne eu.
- Você pode tentar, mas só usarei seu poder para o que realmente for importante, mesmo desejando a Vingança, aprisionarei estes sentimentos assim como fiz contigo e os usarei como combustível para a minha Verdade.
- Veremos até onde você consegue, criança.
Em um instante estávamos todos de volta a caverna.
Notei que agora os cabelos negros como o breu de Rossat estavam com algumas tiras brancas, como se fosse um tigre invertido.
Olhei para ele e falei:
- Se vamos continuar como um grupo, que ele seja chamado Companhia do Tigre Branco.
E rimos desmaiando no chão de cansaço.
A taverna estava em um silêncio absoluto, todos queria saber se existia algo mais.
Então, é isso. Foi assim que nos tornamos a Companhia do Tigre Branco.
A platéia estava ainda digerindo a história quando levantei e fui em direção a Andrew. Coloquei a mão no seu ombro e sem nem virar para mim ele falou:
- Gostou da história Rossat?
Revelando o meu rosto para os outros acenei positivamente com a cabeça.
A filha do taverneiro ao ver que meu cabelos estavam bem mais brancos do que apenas algumas tiras, levou a mão a boca e pressionou as costas contra o encosto da cadeira, fazendo-a quase cair.
- Você tem que parar de contar essas histórias para crianças, elas podem acabar tendo pesadelos.
- O que posso fazer? Eles pediram.
Trocamos algumas palavras sobre amenidades para deixar mais tranquilo o clima tenso que estava na taverna e assim que tive uma oportunidade de falar a sós com o bardo disse com a voz dura:
- Dessa vez você foi longe demais, isso foi quase o que aconteceu.
Sua ebriedade havia desaparecido e provavelmente nunca havia existido.
- Relaxa, eu sei o que estou fazendo.
- Eu sei, mas não faça isso novamente.
- Ok, ok, como você é chato.
- Onde está Rogy? Conseguiu as informações que pedi?
- Ele está lá encima com a outra filha do taberneiro - o que deve gerar uma confusão, agora que ele não está mais distraído - e já tenho tudo que precisamos, mas podemos fazer isso amanhã?
- Rogy. De novo. Tudo bem, amanhã damos seguimento com o plano.
- Claro.
Fomos em direção a porta na esperança de encontrarmos uma estalagem aberta e dessa vez ouvi um som vindo da chuva que não era a voz de Andrew, mas de um velho conhecido que está sempre me espreitando...
- Logo, criança, logo, logo...
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