As bolhas saem do fundo e vão em direção à superfície.
É
sempre esse o movimento.
Cada bolha é breve.
Quando chegar ao seu almejado destino
ela vai deixar de existir.
Gosto de observá-las.
O líquido amarelo é o cenário ideal para o seu breve
movimento.
Cada gole que dou na bebida faz parecer diminuir a
quantidade de bolhas. Em contrapartida as que sobram recebem novos
significados.
Tornam-se memórias do que vivi até agora. Saem do fundo da
minha alma e desaparecem nessa mesa de bar.
Amor. Porque eu ainda acreditava nessas baboseiras
hollywoodianas?
Tentei a sorte em São Paulo achando que iria me casar com a
Roberta e viveríamos felizes para sempre. O que aconteceu em parte. Pois nos
casamos e conseguimos adicionar mais uma definição para inferno no dicionário.
Peço mais uma garrafa.
O garçom não ouve o meu pedido. O bar está mais cheio que o
de costume. Conversas casuais infestam as mesas. O riso dos mais exaltados dói
em meus ouvidos. Porque será que em todo bar tem sempre uma pessoa capaz de
irritar todas as que estão ao redor? Será que em sua busca desesperada por
atenção, o pobre cidadão tem que despertar, mesmo que seja o ódio, no próximo,
para afirmar sua infeliz existência?
Pensei em sair do bar, mas o surgimento de um personagem
novo me fez ficar.
Ele aparenta ter uns cinquenta e cinco anos, cabelo
grisalho, usa um blazer preto por cima de uma camiseta cinza. Lembrando o Clint
Eastwood quando mais novo, mas sem o chapéu de cowboy e a cigarrilha na boca.
Acena de forma discreta para algumas pessoas e recebe acenos
igualmente discretos e posso dizer até que um tanto quanto assustados, como se
conhecessem o homem, mas não soubessem como nem de onde.
Ele senta ao meu lado no balcão do bar e olha para mim.
- A próxima é por minha conta. Ambos tivemos um dia duro. –
Ele não poderia estar mais certo.
O garçom que ainda não havia atendido o meu pedido chega com
dois copos e uma cerveja.
- Essa é por conta do amigo... - Coloco a mão nas costas do novo companheiro
de copo na expectativa que ele dissesse seu nome.
- Vicente – Ele responde com naturalidade – e você é?
- Pablo.
- Conheci um Pablo certa vez. Vendedor de marionetes
espanhol. ”Nunca confie em um espanhol”, devia ter acreditado nisso na primeira
vez que ouvi, mas tenho um péssimo hábito de dar chances a todos que me
procuram. Você parece boa gente e certamente não é espanhol, pelo sotaque. Rio
de Janeiro? Acertei?
- Quase. Itatiaia. A primeira cidade do Rio, vindo de São
Paulo.
- O que te fez vir para as minhas bandas?
- Trabalho. – Estava mentindo e acho que ele percebeu.
- Compreendo... Quase todo mundo que chega aqui é pra
trabalho mesmo... – Somente agora, no meio dessa frase vacilante, pude notar
que os olhos desse senhor eram profundamente negros, do tipo que parece que vai
devorar a sua alma a qualquer instante.
Confesso que fiquei um pouco assustado, talvez as garrafas
que haviam sido esvaziadas antes de sua chegada colaborassem com isso, e
desviei o meu olhar para o copo que antes havia prendido tanto a minha atenção.
Após esse breve incidente a conversa fluiu com a mesma
facilidade com que muitos outros copos foram tomados.
Em certa altura da conversa ele me perguntou algo estranho,
mas o rumo que o papo seguia ia por um caminho tão insólito que a pergunta mais
absurda pareceria absolutamente normal.
- Você prefere motoristas de ônibus ou taxistas?
- Como? – Foi minha resposta instintiva.
- É, pra conversar, trocar uma ideia, qualquer coisa que
você queria falar com eles... Motoristas de ônibus ou taxistas?
- Taxistas. – Disse com uma admirável certeza.
- Por quê? – Perguntou isso como se inquirisse uma pergunta
filosófica.
- Sei lá. Porque da mais tempo para conversar com eles. No
caminho que fazemos estamos sempre sozinhos e parece até uma regra de etiqueta conversar
com ele enquanto ele está nos levando.
- Hum... – Disse pressionando os lábios – Eu já prefiro os
motoristas de ônibus.
- Por quê? – Agora era eu que estava com a posse do olhar
filosófico.
- Eles parecem conhecer mais a cidade. Por mais que os
taxistas façam mais caminhos, eles, os motoristas de ônibus, fazem um mesmo
caminho dezenas de vezes durante o dia, o que lhe dá uma intimidade sem igual
sobre a cidade. Além disso, eles têm um contato muito maior com pessoas e em
situações muitas vezes desconfortáveis. Tudo isso colabora para que ele seja
uma pessoa mais interessante.
Noto que quando ele fala sobre essa intimidade com a cidade
seus olhos brilham. Acho curioso.
- Você mora em São Paulo há muito tempo? - Ele ri como se a
minha pergunta fosse tola.
- Desde antes do Pinheiros ser retificado, quando ele tinha
mais curvas que qualquer outra coisa que você possa imaginar e o Centro ser um
grande matagal.
Balanço a cabeça, fingindo entender sobre o que ele falava.
- Antigamente a Rua da Quitanda realmente tinha quitandas e
o Largo do Café cheirava a café torrado. Bons tempos, mas hoje em dia é muito
mais divertido.
- Concordo. – Quem não concordaria?
- Fico imaginando daqui a mais cem ou duzentos anos, vai ser
fantástico!
A conversa estava interessante, mas não via muito sentido no
que ele continuava a falar com a sua peculiar empolgação.
- Bom... Acho que vou nessa... Estou cansado e ainda tenho
muito o que andar até chegar em casa. São quase cinco da manhã, os metrôs já
devem estar funcionando.
- É, já está tarde. Vou tomar meu rumo também.
- Quanto te devo? – Fala isso enquanto tiro a carteira do
bolso.
- Que nada. Essa noite fica por minha conta, afinal de
contas já estou te devendo uma.
Não entendo bem o motivo dessa “bondade” mas aceito sem mais
perguntas. Ele conversa com o garçom e saímos do bar tranquilamente, já que
éramos os últimos clientes, tirando aquele infeliz risonho que agora se
encontrava dormindo em uma mesa de canto.
A garoa faz despencar a sensação térmica. Esfrego as mãos e
as coloco no bolso, na tentativa de diminuir o frio.
Vicente parece não se importar. Talvez seja por causa do
blazer.
- Boa noite, ou melhor bom dia já, se cuida. – Após falar
isso ele caminha no sentindo oposto ao meu.
- Boa dia...
Caminho em direção a Estação Vila Madalena, tentando
remontar todos os fragmentos da conversa que tive durante a noite.
Uma estranha sensação me toma, como se eu conhecesse aquele
sujeito a muito mais tempo do que uma noite.
Tento ignorar esse sentimento, atribuindo isso ao álcool.
Essa foi uma noite estranha.
3 comentários:
Delícia de texto. A parte do "intimidade com a cidade" me fez lembrar uma música do Red hot... show de bola!
Tarso, resumindo em poucas palavras: MUITO FODA!
se superando a cada dia!!! fiquei curiosa... hehehehehhe
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