quarta-feira, 2 de novembro de 2011
Histórias inquestionáveis
- Anísio! Pare agora de mexer no cabelo da sua irmã ou corto sua mão fora! Na sua idade crianças já estariam trabalhando na minha terra, e não teriam tempo para serem pentelhas como vosmecê.
Anísio parou imediatamente de desfazer a trança de Maria Clara, sua irmã mais nova, pois sabia que quando o Seu Willian falava daquele jeito ele realmente seria capaz de arrancar sua mão fora.
Na tentativa de explicar seus atos ele começou a choramingar.
- Mas foi ela que começou!? Eu estava brincando com os negrinhos lá fora e ela foi contar pro nosso pai que eu estava indo andar na mata! Tomei umas cintadas na perna por causa dessa linguaruda.
- Bem feito – Respondeu Maria ao ver seu irmão tentando se explicar para o seu tutor.
- Parem já com essa briguinha! Na terra da Majestade as crianças são educadas de forma bem mais severa do que nessa selva que os senhorzinhos chamam de país.
Seu Willian, ou Sir Willian como gostava de ser chamado, vivia lembrando saudosamente de sua amada Inglaterra. Há alguns anos tinha chegado ao vilarejo de Jacutinga e o Coronel Mattos, dono do engenho de mesmo nome, resolveu contratá-lo para servir como professor/tutor de seu filho mais velho, Anísio, na tentativa de dar uma educação britânica para aquele moleque traquina.
Seus métodos nem sempre podiam ser chamados de tradicionais, já que além de fazer o menino aprender os mistérios da matemática e geometria, o fazia decorar longos trechos de clássicos em grego e latim. O garoto antes de ter barba no rosto já sabia recitar trechos escritos por Xenofonte com singular habilidade.
Mas não era só nas artes intelectuais que o rapaz estava sendo treinado, tinha que aprender a nadar, lutar e montar. Como o Seu Willian falava, “Um cavalheiro usa palavras quando lhe falta a espada e usa a espada quando lhe faltam palavras.”.
Seu português, apesar de possuir algum sotaque de sua terra natal, era razoavelmente entendível, mas quando ficava bravo podia-se ouvir ao longe palavras que todos sabiam que era xingamentos, sem terem realmente certeza sobre o que elas queriam dizer.
Maria Clara, mesmo com sua pouca idade – havia completado sete anos na semana passada – percebeu que iria sobrar castigos para ela e seu irmão se continuasse com aquela briga e buscando desviar a atenção do professor, pediu algo que sabia que distrairia o velho inglês por um tempo.
- Aaaah! O Anísio é um chato, conte a ele uma das suas histórias para ver se ele aprende alguma coisa. É bem melhor que cortar a mão do boboca.
E após terminar o seu meloso pedido fez uma cara que só as crianças conseguem fazer.
Aquela exata feição que te tornar um monstro terrível caso não atenda seus “inocentes” pedidos.
- Está bem... Mas não pensem que saíram ilesos caso voltem a brigar.
Ao perceber que não tomaria mais cintadas ou varadas de marmelo aquietou-se e se sentou perto de Maria para ouvir uma história, que sempre tinha um cunho fantástico porem inquestionável.
- Já contei a história da princesa da torre?
- Não. Respondeu em coro o casal.
- É mais ou menos assim.
Há muito tempo, antes que esses trambolhos a vapor infestassem a Inglaterra e o título de Sir ser entregue apenas aos homens de real valor e não a esses traiçoeiros vendedores de homens, existia um cavaleiro que ia de vila em vila ajudando as pessoas e matando monstros terríveis.
- Monstros!? Tipo a Mula-sem-cabeça e a Cuca? – Perguntou a pequena.
- Não! Pelo amor de Deus! Estou falando de monstros de verdade, como Gigantes e Trolls, coisas há muito tempo extintas ou muito bem escondidas. E pare de atrapalhar a minha história.
Como ia dizendo, o cavaleiro ia salvando o povo e com isso sua fama ia aumentando.
Mas não pensem que ele ficava vaidoso com sua fama. Estamos falando de um cavaleiro de verdade, do tipo que não se deixa atingir por esses sentimentos do populacho.
E falemos a verdade, muita da sua fama era resultado de sua espada mágica. Feita do aço mágico dos anões, por isso resistente como uma montanha e afiada como o primeiro vento do inverno. Ah! Já ia me esquecendo de que vocês não sabem o que é inverno de verdade. Então imaginem uma lamina tão afiada que seria capaz de cortar um fio de cabelo.
- Noooossa - O coro infantil voltou a falar imaginando algo tão poderoso.
Essa espada chegou a ele de forma misteriosa, mas isso já é outra história que conto em outra oportunidade.
Diziam que era a própria Excalibur, talvez até fosse, não sei dizer. O importante a dizer no momento é que certo dia ele ouviu uma canção no vento. Tão bela e tão triste que uma força irrefreável o levou a origem daquela súplica em forma de melodia.
Uma linda princesa estava a cantar da janela de uma torre sem entradas. Ao ver o nobre cavaleiro se aproximar ela se escondeu com medo que ele lhe fizesse algum mal.
Então ele disse: “Não tema bela princesa, estou aqui para te salvar!”.
Ao ouvir isso ela voltou para a janela e meio que em lágrimas disse: “Ninguém pode me salvar! Existe um Dragão que me mantem refém nessa torre. Choro pelo meu e pelo seu destino, pois nesse momento o terrível lagarto já deve ter ouvido nossa conversa e está vindo para te devorar. Desculpe nobre rapaz.”.
“Não temo Dragão ou Demônio algum! Pode vir a mais terrível criatura das trevas, que mostrarei a ela o sabor do aço de minha espada!”.
Aquela coragem, que muitos chamariam de loucura, foi colocada a prova momentos depois, pois um Dragão Negro imenso surgiu, sua respiração venenosa expelia uma fumaça esverdeada de suas narinas, suas escamas negras como a noite sem luar fariam qualquer pessoa normal sair correndo. Mas o cavaleiro não era uma pessoa normal.
Se esquivando dos jatos corrosivos que o Dragão expelia pela boca ele foi se aproximando cada vez mais da torre, até que um dos ataques do monstro acertou uma parede da torre criando uma entrada.
Com metade do seu plano já concluído ele partiu para a parte mais difícil. Matar o Dragão.
Seus músculos doíam com o esforço sobre-humano que ele tinha que fazer para conseguir lutar com a criatura, um dos ataques do vil lagarto acertou de raspão sua perna, tornando ainda mais hercúlea a força necessária para dar fim aquela peleja.
Alguns dizem que foi por sorte, outros que foi habilidade do guerreiro, mas acredito que foi a vontade da espada que guiou a lamina até o coração do Dragão.
E foi isso. O Dragão estava morto. Ou quase. Para se matar de verdade um Dragão é necessário que o seu coração fique perfurado por 100 anos, e só os metais mágicos conseguem ferir aquele tipo de criatura.
Dizem que depois desse tempo, o coração vira uma pedra e outro cavaleiro irá poder testar seu valor tentando remover a espada e ser seu novo portador.
- Então ele tinha que perder a espada? – Perguntou Anísio.
- Era o que deveria acontecer. Mas deixem-me terminar a história.
Após deixar sua espada no peito do Dragão, ele foi até a princesa para regatá-la de sua solitária prisão.
“Pronto, acabei que seu terrível algoz, agora está livre para partir e retornar a sua família. Ou se assim vosmecê desejar, pode ser minha esposa e desfrutar de uma vida longa e feliz ao meu lado.”.
A princesa estava catatônica. Olhava o cavaleiro, o Dragão morto e a espada no peito do monstro.
“Não posso.”
“Como!?” - Disse o cavaleiro surpreso.
“É não posso. Admiro o seu valor, mas essa torre e esse Dragão são tudo que conheço como mundo. Não tenho nada mais o que desejar. Era terrível, mas também era seguro. Porque iria querer partir da minha torre?”.
Nunca havia acontecido nada parecido com o cavaleiro, seu coração ficou inundado com um imenso vazio. Será que algumas pessoas não querem ser salvas? Esse pensamento aterrorizava o herói.
Então, sem mais nada a dizer, ele virou as costas e saiu da torre, removeu a espada do coração da fera e partiu.
Em pouco tempo o Dragão acordou e selou novamente a princesa em sua torre.
Vale dizer, que ao retirar sua espada do coração do monstro ele notou que foi mais difícil que das vezes anteriores, a espada parecia mais pesada.
E assim acaba a história.
- Que história chata. Não tem final feliz. Mas pelo menos o herói continua com a sua espada e continua salvando pessoas. - Disse Maria, que já deixava demonstrar um pouco de sono nos seus olhos pequeninos.
- Vosmecê ainda é jovem pequena, um dia vai entender que talvez tenha sido um final feliz. É bem verdade que pouco tempo depois a espada abandonou o cavaleiro, mas isso também é outra história.
E com um sinal fez menção que queria que os dois fossem para seus quartos.
Mas Anísio ainda queria fazer uma última pergunta a seu mestre.
- Gostei da história, mas vosmecê não disse o nome do cavaleiro. Poderia me contar?
Sua pergunta causou uma reação de surpresa no inglês, ele forçou a memória mas não conseguiu lembrar o nome do cavaleiro.
- Desculpe Anísio, mas não lembro o nome dele. Caso lembre serás o primeiro a quem contarei.
E as crianças foram para os seus quartos no grande casarão colonial. Enquanto isso a pergunta ainda ecoava na mente de Willian.
Ele pegou seu cachimbo do bolso, bateu o fumo antigo e colocou um pouco do novo que estava no outro bolso, fazia isso enquanto ia para varanda. Chegando lá viu a noite que se aproximava e disse baixinho, quase que num sussurro.
- Como eu me perdi de vosmecê?
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5 comentários:
De certo modo parece historia recente que aconteceu comigo
Parabéns Tarso, o conto ficou muito bom. Lembrou-me muito a conversa que tivemos sobre a imcompletude das histórias desse gênero e como ela permite um potencial imaginativo ímpar.
"A imaginação foi a companheira de toda a minha existência, viva, rápida, inquieta..."
(Machado de Assis)
Apreciei muito o conto, pois assim como nos lembra André Oliveira ele nos "permite um potencial imaginativo ímpar". No momento presente podemos através da imaginação retornar a um passado que delineia nossas origens. A simplicidade e riqueza de nossa cultura foi muito bem retratada por você de forma bastante peculiar. Parabéns e continue desenvolvendo essa sua habilidade para nos presentear com sua histórias.
Mt obrigado pelos comentários elogiosos, espero continuar respondendo as expectativas de vocês.
Em breve teremos mais novidades.
de facto um conto primoroso!! O modo como a estória foi conduzida ficou interessantíssimo, e adorei a oportunidade de poder participar dela quando vosmecê deixa esse espaço para interpretações pessoais. São poucas a oportunidades em que eu acho que isso dá certo, e esta foi uma delas. Geralmente as pessoas deixam essa brechas por não saberem o que dizer... não vejo isso no teu caso. Muito bom mesmo! No entanto, senti falta o accent do Sir. William. "Acreditou" que uma voice inglesa deixaria vosso conto maix "ricou"
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